1ª VRP|SP: Registro de Imóveis – Escritura Pública de Inventário e Partilha – Cláusula de Incomunicabilidade sem Justa Causa – Inobservância dos artigos 1.848 e 2.042 do Código Civil – Documentos digitais em desconformidade com as normas técnicas – Procedência da Dúvida.

Sentença

Processo nº: 1008617-49.2025.8.26.0100

Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis

Requerente: 17º Oficial de Registro de Imóveis da Capital

Requerido: Felipe Augusto Verardi

Juíza de Direito: Dra. Renata Pinto Lima Zanetta

Vistos.

Trata-se de dúvida suscitada pelo 17º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo, a requerimento de Felipe Augusto Verardi, diante de negativa em se proceder ao registro de escritura pública de inventário e partilha e aditamentos retificativos, envolvendo o imóvel objeto da matrícula n. 6.264 daquela serventia.

O Oficial informa que foi apresentada para registro a escritura pública de inventário e partilha lavrada em 11.09.2019 (acompanhada de aditamentos retificativos lavrados em 13.09.2024 e em 21.10.2024) pelo 3º Tabelionato de Notas de São Paulo, tendo por objeto o imóvel matriculado sob n. 6.264 da serventia; que o título foi qualificado negativamente e devolvido por meio de nota devolutiva; que, da análise da escritura de inventário e partilha dos bens deixados pelo falecimento de Nelson Udini Verardi e Fany Lisi Poli Verardi, constatou-se que ambos deixaram testamentos, sendo que (a) Nelson Udine Verardi deixou um testamento lavrado em 16.09.1982 pelo 12º Tabelionato de Notas desta Capital (livro 1016 – fls. 79v.), e (b) Fany Lisi Poli Verardi deixou os seguintes testamentos: (i) testamento lavrado em 27.10.1977 pelo 7º Tabelionato de Notas da Capital (livro 3258 – fls. 55), (ii) testamento lavrado em 16.09.1982 pelo 12º Tabelionato de Notas da Capital (livro 1016 – fls. 81), (iii) testamento lavrado em 16.01.1990 pelo 1º Tabelionato de Notas de Santos (livro 496 – fls. 389), e (iv) testamento lavrado em 17.08.1998 pelo 4º Tabelionato de Notas de Santos (livro 507 – fls. 172); que nos testamentos, lavrados anteriormente à entrada em vigor do atual Código Civil, houve a imposição de cláusula restritiva de incomunicabilidade sobre os bens atribuídos ao filho Nelson Udine Verardi Filho, mas não consta que o procedimento previsto nos artigos 2.042 e 1.848 do Código Civil tenha sido observado; que da partilha constante da escritura apresentada consta a incidência da cláusula de incomunicabilidade sobre o quinhão de referido herdeiro, mesmo não havendo a menção à “justa causa” nos testamentos; que, ainda que tenham sido partilhados diversos bens, as cláusulas relativas ao pagamento constantes no título limitaram-se a indicar que o pagamento feito a título de meação, legítima e legado, corresponde a uma fração do monte mor, não tendo havido a indicação sobre quais bens os beneficiados receberiam em suas frações, de modo que não foi observado o inciso II do artigo 653 do Código de Processo Civil; que, por essa razão, o título foi devolvido quando apresentado sob prenotação n. 289.341, solicitando que fosse retificado, com o comparecimento de todas as partes, a fim de que (a) dele constassem os dados relativos (a.1) à autorização do juízo sucessório, (a.2) aos autos de abertura e cumprimento de testamento, bem como apresentação dos testamentos por meio de certidões ou cópias extraídas dos autos, (b) da sentença proferida pelo juízo sucessório estivesse consignada a prevalência ou não da cláusula restritiva imposta, (c) as cláusulas relativas aos pagamentos detalhassem os bens sobre os quais a meação, legítima e legado iriam incidir; que, quando de sua reapresentação, sob prenotação n. 290.877, além do título foi apresentado também o Ato de Aditamento Retificativo do Inventário dos Espólios de Nelson Udine Verardi e Fany Lisi Poli Verardi, lavrado em 13.09.2024, no qual restou consignado que foi apresentado ao Tabelião de Notas “a validação e autorização judicial dos referidos testamentos,  processo nº. 0006461- 96.2011.8.26.0100, da 1ª Vara da Família e Sucessões desta Capital“; que, tendo em vista que ambos os falecidos deixaram testamento e que do Ato de Aditamento Retificativo só houve menção a um processo correspondente à abertura e cumprimento de testamento (processo n. 0006461-96.2011.8.26.0100 – Fany Lisi Poli Verardi), o título foi novamente devolvido ante a necessidade de retificação da escritura nos termos anteriores; que, em razão de referida devolução, o interessado lavrou novo Ato de Aditamento Retificativo, lavrado em 21.10.2024, por meio do qual informou que a autorização para lavratura da escritura pública foi concedida na “sentença datada de 20 de agosto de 2019, nos autos do processo nº 0343192-86.2009.8.26.0100 da 1ª Vara da Família e Sucessões desta Capital“; que, tendo em vista que a sentença proferida nos autos do processo n. 0343192-86.2009.8.26.0100 não mencionou se a cláusula restritiva imposta por ambos os testadores em testamentos lavrados anteriormente à vigência do atual Código Civil deveria ou não prevalecer nos termos dos artigos 2.042 e 1.848 do Código Civil, o título foi novamente devolvido em 29.10.2024 sob prenotação n. 292.521.

O Oficial esclarece que o título foi novamente protocolizado por meio da plataforma eletrônica sob n. 293.932 e, durante sua qualificação, constatou-se que, além de não terem sido cumpridas as exigências, o envio pelo meio eletrônico não atendeu aos requisitos normativos, notadamente os itens 365 e 366, Cap. XX, das NSCGJ, tendo em vista que o arquivo “AC004722982_escritura_aditada_Verardi_17544274.pdf”, relativo ao Ato de Aditamento Retificativo lavrado em 13.09.2024, trata de documento físico digitalizado que não atendeu os padrões técnicos dos documentos digitais; que referido documento foi submetido à consulta no site “https://validar.iti.gov.br” e retornou com a informação de que “você submeteu um documento sem assinatura reconhecível ou com assinatura corrompida“; que no mesmo sentido (a) o arquivo “AC004722982_reratificaAAo_novaautenticado_pdfa_17544414.pdf”, relativo ao Ato de Aditamento Retificativo lavrado em 21.10.2024, apesar de ter sido salvo em PDF/A, foi digitalizado conforme se denota da marca d’água do aplicativo “CamScanner”, não foi assinado digitalmente e não possui manifesto de assinatura que possibilite confirmação no site do e- notariado, (b) os documentos “AC004722982_certidão_demostrativo_17544292.pdf” e “AC004722982_Guias_de_ITCMD certidão_1754401.pdf”, apesar de emitidos sob forma de certidão física, foram apenas digitalizados, não foram assinados digitalmente e não possuem manifesto de assinatura que possibilite confirmação no site do e-notariado; que no requerimento para suscitação de dúvida, o suscitado argumenta acreditar que houve equívoco na qualificação registrária do título, o que não é o caso; que as exigências devem prevalecer tendo em vista que (i) da decisão nos autos do processo n. 1110612-81.2020.8.26.0100 desta Corregedoria Permanente ficou consignado que caso não haja aditamento do testamento para declarar a justa causa de sua instituição no prazo de um ano após a vigência do atual Código Civil, a perda da eficácia e validade não se opera automaticamente pelo decurso do prazo, devendo ser reconhecida judicialmente, (b) o herdeiro filho Nelson Udine Verardi Filho é casado sob regime da comunhão de bens, desde 09.07.1976, com Sheila Clear Lombardi Verardi, sendo que a averbação da cláusula de incomunicabilidade não permitirá que referido cônjuge participe da titularidade do bem transmitido, (c) não obstante o valor do monte mor de cada uma das sucessões corresponder à soma dos valores atribuídos aos bens, na atribuição do quinhão de cada herdeiro não constou a relação do(s) bem(ns) atribuído(s), em desacordo com o disposto no artigo 653, inciso II, do Código de Processo Civil, e (d) o envio de títulos digitais e documentos necessários à sua qualificação devem obedecer rigorosamente os critérios técnicos constantes das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça e do Manual do E-Protocolo; e que, face ao exposto, devem ser mantidas as exigências (fls. 01/06).

Documentos vieram às fls. 07/129 e 133/137.

Em manifestação dirigida ao Oficial, e em impugnação, a parte suscitada aduziu que o Oficial se nega a proceder ao registro da escritura pública que possibilitaria o prosseguimento do inventário de Nelson Udine Verardi Filho (processo n. 1080377- 92.2024.8.26.0100), impedindo o prosseguimento do feito e a cadeia sucessória, uma vez que tanto Nelson Udine Verardi, Fany Lisi Poli Verardi e Nelson Udine Verardi Filho já são falecidos; que as exigências são incompatíveis e impossíveis de serem cumpridas, visto o falecimento do herdeiro Nelson Udine Verardi Filho; que o Oficial não informa nos autos que outros cartórios de Registro de Imóveis registraram a mesma escritura de inventário e partilha, possibilitando o correto prosseguimento da cadeia sucessória; que não prosperam as alegações do Oficial, uma vez que com a morte de Nelson Udine Verardi Filho a cláusula restritiva perde a eficácia, pouco importando se este era ou não casado com Sheila Clear Lombardi Verardi; que a cláusula de incomunicabilidade imposta a um bem transferido por doação ou testamento só produz efeitos enquanto vivo o beneficiário, o que não se verifica no caso em tela; que o valor do monte mor foi devidamente partilhado em sua totalidade, estando todos os herdeiros de acordo; que não prospera a alegação que o envio dos documentos digitais não respeitou as Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, tendo em vista que a mesma escritura pública foi registrada e averbada nos demais cartórios de Registro de Imóveis; que todos os impostos foram devidamente recolhidos à época dos fatos, inclusive os emolumentos necessários; e que, nesse contexto, as exigências para o registro do título devem ser afastadas (fls. 138/143). Juntou documentos (fls. 144/164).

O Ministério Público ofertou parecer, opinando pela manutenção dos óbices (fls. 168/170).

É o relatório.

Fundamento e Decido.

Inicialmente, cumpre ressaltar que o Registrador dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (artigo 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.

No sistema registral, vigora o princípio da legalidade estrita, pelo qual somente se admite o ingresso de título que atenda aos ditames legais. Assim, o Oficial, quando da qualificação registral, perfaz exame dos elementos extrínsecos do título à luz dos princípios e normas do sistema jurídico (aspectos formais), devendo obstar o ingresso daqueles que não se atenham aos limites da lei.

É o que se extrai do item 117 do Capítulo XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça (NSCGJ): “Incumbe ao oficial impedir o registro de título que não satisfaça os requisitos exigidos pela lei, quer sejam consubstanciados em instrumento público ou particular, quer em atos judiciais“.

No mérito, a dúvida é procedente.

No caso concreto, a parte pretende o registro de escritura pública de inventário e partilha lavrada em 11.09.2019 (acompanhada de aditamentos retificativos lavrados em 13.09.2024 e em 21.10.2024) pelo 3º Tabelionato de Notas de São Paulo, referente aos bens deixados pelo falecimento de Nelson Udini Verardi e Fany Lisi Poli Verardi, dentre eles o imóvel matriculado sob n. 6.264 da 17º Registro de Imóveis de São Paulo (fls. 20/34)

De acordo com os testamentos deixados por Nelson Udine Verardi e Fany Lisi Poli Verardi, foi determinado pelos testadores que todos os bens e haveres recebidos pelo herdeiro filho Nelson Udine Verardi Filho ficassem gravados com cláusula de incomunicabilidade (fls. 22).

Não se declarou, em tais atos notariais lavrados sob a égide do Código Civil de 1916, justa causa para estabelecer as cláusulas restritivas sobre os bens (fls. 46/48, 50/52, 54/57 e 59/63).

Com o falecimento de Nelson Udine Verardi e Fany Lisi Poli Verardi em 19.09.2009 e 24.12.2010, respectivamente (fls. 43/44), os herdeiros obtiveram autorização judicial para promover o inventário por escritura pública, em cumprimento aos testamentos deixados pelos “de cujus” (processo n. 0343192-86.2009.8.26.0100 da 1ª Vara da Família e Sucessões do Foro Central da Capital – fls. 66). Importante observar que não houve decisão judicial sobre a manutenção das cláusulas restritivas.

Pela escritura pública de inventário e partilha (o título), em cumprimento a testamento, os bens deixados pelos falecidos foram partilhados e todos os bens recebidos pelo filho herdeiro, Nelson Udine Verardi Filho, ficaram gravados com cláusula de incomunicabilidade (fls. 21/30).

Como se sabe, o título apresentado ao registro imobiliário está sujeito à lei vigente ao tempo da sua prenotação, em atenção ao princípio do tempus regit actum (Apelação Cível nº, 115-6/7, rel. José Mário Antonio Cardinale, nº 777-6/7, rel. Ruy Camilo, nº 530-6/0, rel. Gilberto Passos de Freitas, e o de nº 0004535-52.2011.8.26.0562).

Vale dizer, é a data da prenotação que marca o início do procedimento registral, cabendo ao Registrador, quando da qualificação registral, observar as normas vigentes na referida data (prenotação), e não as que vigoravam no momento da celebração do negócio ou da lavratura do título.

O direito de propriedade pode sofrer limitações quanto ao uso, gozo e disposição (art. 1228 do CC), por previsão de norma constitucional, previsão legal, do interesse público, de proteção econômica e de proteção do bem de família.

No campo do direito sucessório, o autor da herança, por testamento, pode manifestar a vontade de que os seus bens deixados aos herdeiros ou legatários, por força de sucessão legítima ou testamentária, sejam gravados com cláusulas restritivas, com o intuito de impedir sua alienação, penhora e comunicação.

Essas cláusulas, apesar de não suspenderem ou condicionarem a aquisição do patrimônio pelos herdeiros necessários (cf. CC/02), subtraem parte dos poderes do herdeiro sobre o imóvel transmitido. As cláusulas de inalienabilidade e impenhorabilidade impossibilitam a circulação do imóvel e impedem o seu tráfego jurídico ao passo que a cláusula de incomunicabilidade impede que o bem recebido pelo herdeiro se incorpore ao patrimônio do casal, conservando sua natureza de bem particular do cônjuge.

Como ensina Ademar Fioranelli:

“Essas mesmas restrições poderão ser estabelecidas nos atos de doação, quer por adiantamento de legítima, quer por mera liberalidade, devendo tais gravames, dada a sua importância e sua repercussão no mundo dos negócios, serem averbados nas matrículas dos imóveis, na forma prescrita no art. 167, II, n. 11 da Lei de Registros Públicos.” (Fioranelli, Ademar. Das cláusulas de Inalienabilidade, Impenhorabilidade e Incomunicabilidade. São Paulo: Editora Almedina Brasil. 2024. 2ª ed., página 41).

Em relação às cláusulas restritivas apostas em testamento, o Código Civil vigente assim dispõe:

“Art. 1.848. Salvo se houver justa causa, declarada no testamento, não pode o testador estabelecer cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bens da legítima. (…)

Art. 2.042. Aplica-se o disposto no caput do art. 1.848, quando aberta a sucessão no prazo de um ano após a entrada em vigor deste Código, ainda que o testamento tenha sido feito na vigência do anterior, Lei n º 3.071, de 1º de janeiro de 1916; se, no prazo, o testador não aditar o testamento para declarar a justa causa de cláusula aposta à legítima, não subsistirá a restrição.”

Conforme se extrai dos dispositivos, a lei vigente autoriza que o testador estabeleça as cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e de incomunicabilidade sobre os bens da legítima, mas desde que declare expressamente no título as razões, que devem ser justas (justa causa).

Portanto, atualmente, não mais prevalece a vontade incondicionada do testador quanto à cláusula restritiva à legítima, sendo necessário que ele declare a justa causa para torná-la válida e apta a produzir efeitos.

Para os testamentos efetivados na vigência do Código Civil de 1916, o artigo 2.042 consagra regra de transição, prevendo o prazo de um ano após a entrada em vigor do novo Código Civil (11.01.2003) para que o testador possa aditar o testamento realizado antes do ingresso da nova legislação, a fim de declarar a justa causa para imposição de cláusulas restritivas à legítima.

Assim, se o aditamento ao testamento não se efetivou, e o óbito ocorreu até 11.01.2004, as restrições serão consideradas válidas, apesar da omissão do testador.

Contudo, após a referida data, as cláusulas não justificadas serão consideradas insubsistentes e, por conseguinte, o herdeiro receberá a legítima sem qualquer restrição.

Na espécie, como dito, nos testamentos deixados pelos “de cujus“, lavrados na vigência do Código Civil de 1916, não consta declaração de justa causa para imposição de cláusula de incomunicabilidade sobre os bens da legítima transmitidos ao filho herdeiro.

Tanto os pedidos de abertura, registro e cumprimento dos testamentos (processos nºs. 0341544-71.2009.8.26.0100 – fls. 68 e 0006461-96.2011.8.26.0100 – fls. 70) como de realização de inventário e partilha na via extrajudicial por meio de escritura pública (processo n. 0343192-86.2009.8.26.0100 – fls. 66) foram objeto de sentenças judiciais proferidas nos respectivos autos, entretanto, não houve decisão judicial para permitir a manutenção da cláusula restritiva de incomunicabilidade não justificada nos atos notariais.

E, no entanto, do título apresentado consta que todos os bens recebidos pelo filho herdeiro, inclusive os da legítima, foram gravados com clausula de incomunicabilidade (fls. 22).

Neste cenário, mostra-se acertado o óbice registrário.

Oportuno mencionar que diferente seria se no título não tivesse constado a cláusula restritiva dos testamentos sobre os bens da legítima, pois nesse caso, o cumprimento aos testamentos e a partilha estariam em consonância com o “não subsistirá a restrição” do artigo 2042 do Código Civil.

Do mesmo modo, não se poderia obstar o ingresso com base no disposto nos artigos 1848 e 2042 do Código Civil, se o título consubstanciasse um formal de partilha judicial ou uma carta de adjudicação judicial extraídos de autos de processo judicial, em decorrência de sucessão com partilha homologada e com trânsito em julgado, pois, nessa situação, tratar-se-ia do mérito da decisão jurisdicional que decidiu sobre a partilha e a manutenção das cláusulas restritivas advindas de testamento lavrado sob a égide do Código Civil de 1916.

Finalmente, não se constata qualquer irregularidade na qualificação registral promovida sobre as cláusulas restritivas, visto que o Oficial atua com autonomia e independência, não se vinculando à atuação de outros Registradores, e detém competência para recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade, especialmente o da legalidade estrita.

Nesse sentido:

REGISTRO DE IMÓVEIS – DÚVIDA – RECUSA EM REGISTRAR ESCRITURAS PÚBLICAS DE DOAÇÃO COM RESERVA DE USUFRUTO COM CLÁUSULAS RESTRITIVAS EM FACE DA INEXISTÊNCIA DE INDICAÇÃO DE JUSTA CAUSA – INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 1.848, “CAPUT” E 2.042 DO CÓDIGO CIVIL – APLICAÇÃO DAS EXIGÊNCIAS LEGAIS CONTEMPORÂNEAS AO REGISTRO – APELAÇÃO DESPROVIDA. (TJSP; Apelação Cível 1088976-88.2022.8.26.0100; Relator: Fernando Torres Garcia (Corregedor Geral); Órgão Julgador: Conselho Superior da Magistratura; Foro de Americana – 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 15/12/2023; Data de Registro: 19/12/2023)

Registro de imóveis – Dúvida – Recusa em registrar escritura pública de doação com reserva de usufruto com cláusulas restritivas em face da inexistência de indicação de justa causa – Inteligência dos arts. 1.848, “caput” e 2042 do Código Civil – Recurso desprovido. (TJSP; Apelação Cível 1005134-85.2020.8.26.0132; Relator: Ricardo Anafe (Corregedor Geral); Órgão Julgador: Conselho Superior da Magistratura; Foro de Catanduva – 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 02/12/2021; Data de Registro: 15/12/2021)

A propósito, o E. Conselho Superior da Magistratura, em voto proferido pelo Corregedor Geral da Justiça, Des. Francisco Eduardo Loureiro, já asseverou que: “As sucessões devem ser feitas corretamente, de modo individualizado, e, cumulados inventários, com declarações e partilhas feitas em separado e pagamento de tributos devidos para cada uma das hipóteses de incidência previstas em lei. As partilhas devem observar a ordem de falecimentos, a disponibilidade e o quinhão atribuído a cada sucessor, ressalvadas hipóteses de comoriência.” (CSMSP – Apelação Cível: 1110734-55.2024.8.26.0100; Localidade: São Paulo; Data de Julgamento: 05/12/2024; Data DJ: 12/12/2024; Relator: Francisco Loureiro).

No caso, a escritura pública de inventário e partilha indica que o falecido Nelson Udine Verardi, na data da abertura da sua sucessão (19.09.2009), possuía a integralidade dos bens descritos nos itens 3.1 a 3.5 (incluindo o imóvel objeto da matrícula n. 6.264 do 17º Registro de Imóveis de São Paulo), e a autora da herança Fany Lisi Poli Verardi possuía, na data da abertura da sua sucessão (24/12/2010), três quartos dos bens descritos nos itens 3.1 a 3.5 e a integralidade do bem descrito no item 3.6 (fls. 23).

Com relação à partilha dos bens arrolados, restou consignado que (a) os bens deixados por Nelson Udine Verardi foram partilhados na proporção de metade à viúva Fany Lisi Poli Verardi a título de meação, um quarto à viúva a título de testamento e um quarto ao herdeiro filho Nelson Udine Verardi Filho; e (b) os bens deixados por Fany Lisi Poli Verardi foram partilhados na proporção de metade ao herdeiro filho Nelson Udine Verardi Filho, um quarto a Felipe Augusto Verardi, a título de testamento, e um quarto a Flávio Augusto Verardi, a título de testamento (fls. 26).

Nesse contexto, estando devidamente individualizados, descritos e arrolados os bens que compunham o patrimônio dos “de cujus” no momento da abertura das respectivas sucessões, bem como determinada a fração ideal transmitida a cada herdeiro, não se vislumbra irregularidade na escritura de inventário e partilha passível de retificação, tal como aventado no item 2 da nota devolutiva expedida (fls. 107/108).

Por fim, é importante lembrar que a forma do título é indispensável para sua admissão no Registro de Imóveis. Somente podem ser admitidos a registro os títulos hábeis que assumam a forma prevista em lei.

Assim, a qualificação registral incide, dentre outros tantos requisitos, no exame dos requisitos formais do título apresentado para registro ou averbação de fatos, de atos e de negócios jurídicos, não se admitindo o acesso ao fólio real de documento que não assuma a forma prevista em lei ou apresentado com deficiência formal. A avaliação do título hábil e de seus requisitos recai diretamente na análise da forma, autoria, integridade, autenticidade, temporalidade, conteúdo, presunção de validade jurídica, dentre outros.

A Lei n. 14.382/2022, que dispõe sobre o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (SERP), em seu artigo 6º, estabelece que os oficiais de registros públicos receberão dos interessados, por meio do SERP, extratos eletrônicos para registro ou averbação de fato, de atos ou de negócios jurídicos, nos termos do artigo 7º, inciso VIII, da mesma Lei.

O artigo 7º, da Lei n. 14.382/2022, por sua vez, atribuiu à E. Corregedoria Nacional de Justiça disciplinar o disposto na referida lei, em especial os seguintes aspectos (nossos destaques):

“Art. 7º Caberá à Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça disciplinar o disposto nos arts. 37 a 41 e 45 da Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009, e o disposto nesta Lei, em especial os seguintes aspectos:

I – os sistemas eletrônicos integrados ao Serp, por tipo de registro público ou de serviço prestado;

(…)

I- os padrões tecnológicos de escrituração, indexação, publicidade, segurança, redundância e conservação de atos registrais, de recepção e comprovação da autoria e da integridade de documentos em formato eletrônico, a serem atendidos pelo Serp e pelas serventias dos registros públicos, observada a legislação;

II- a forma de certificação eletrônica da data e da hora do protocolo dos títulos para assegurar a integridade da informação e a ordem de prioridade das garantias sobre bens móveis e imóveis constituídas nos registros públicos;

(…)

VIII – a definição do extrato eletrônico previsto no art. 6º desta Lei e os tipos de documentos que poderão ser recepcionados dessa forma; (…)”

Com a edição do Provimento CNJ n. 149/2023, que instituiu o Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ, a E. Corregedoria Nacional de Justiça normatizou sobre a recepção de títulos e documentos nato-digitais ou digitalizados encaminhados eletronicamente, nos seguintes termos:

“Art. 208. Os oficiais de registro e os tabeliães deverão recepcionar diretamente títulos e documentos nato-digitais ou digitalizados, observado o seguinte:

(…)

II – a recepção pelos oficiais de registro ocorrerá por meio:

a) preferencialmente, do Sistema Eletrônico dos Registros Públicos Serp e dos sistemas que o integra (especialmente os indicados nos incisos I a III do § 1º do art. 211 deste Código); ou

b) de sistema ou plataforma facultativamente mantidos em suas próprias serventias, desde que tenham sido produzidos por meios que permitam certeza quanto à autoria e integridade.

§ 1º Consideram-se títulos nato-digitais, para todas as atividades, sem prejuízo daqueles previstos em lei específica: (incluído pelo Provimento n. 180, de 16.8.2024)

II – o documento público ou particular gerado eletronicamente em PDF/A e assinado, por todos os signatários (inclusive testemunhas), com assinatura eletrônica qualificada ou com assinatura eletrônica avançada admitida perante os serviços notariais e registrais (art. 17, §§ 1º e 2º, da Lei n. 6.015/1973; art. 38, § 2º, da Lei n. 11.977/2009; art. 285, I, deste Código); (incluído pelo Provimento n. 180, de 16.8.2024) II – o documento público ou particular para qual seja exigível a assinatura apenas do apresentante, desde que gerado eletronicamente em PDF/A e assinado por aquele com assinatura eletrônica qualificada ou com assinatura eletrônica avançada admitida perante os serviços notariais e registrais (art. 17, §§ 1º e 2º, da Lei n. 6.015/1973; art. 38, § 2º, da Lei n. 11.977/2009; art. 285, I, deste Código); (incluído pelo Provimento n. 180, de 16.8.2024)

III- a certidão ou o traslado notarial gerado eletronicamente em PDF/A ou XML e assinado por tabelião de notas, seu substituto ou preposto; (incluído pelo Provimento n. 180, de 16.8.2024)

IV- os documentos desmaterializados por qualquer notário ou registrador, gerados em PDF/A e assinados por ele, seus substitutos ou prepostos com assinatura qualificada ou avançada; (incluído pelo Provimento n. 180, de 16.8.2024)

V- cartas de sentença, formais de partilha, cartas de adjudicação, os mandados de registro, de averbação e de retificação, obtidos na forma do inciso I ou por acesso direto do oficial do registro ao processo judicial eletrônico, a requerimento do interessado; (incluído pelo Provimento n. 180, de 16.8.2024)

§ 2.º Consideram-se títulos digitalizados com padrões técnicos aqueles que forem digitalizados em conformidade com os critérios estabelecidos no art. 5.º do Decreto n. 10.278, de 18 de março de 2020, inclusive os que utilizem assinatura eletrônica qualificada ou avançada admitida perante os registros públicos (art. 17, §§ 1º e 2º, da Lei n. 6.015/1973; art. 38, § 2º, da Lei n. 11.977/2009;

Art. 210. Os oficiais de registro ou tabeliães, quando recepcionarem título ou documento digitalizado, poderão exigir a apresentação do original e, em caso de dúvida, poderão requerer, ao juiz, na forma da lei, providências para esclarecimento da autenticidade e integridade. (redação dada pelo Provimento n. 180, de 16.8.2024)”

Como se denota, para a recepção de títulos e documentos encaminhados eletronicamente ao Registrador de Imóveis, não basta apenas a remessa eletrônica. É preciso analisar o seu enquadramento como título/documento nato digital ou digitalizado e, assim, verificar se há observância dos requisitos legais e normativos.

No caso, verifica-se que houve a remessa eletrônica de digitalização de documentos expedidos originalmente em meio físico e que não atendem os requisitos legais e normativos.

Em outros termos, os documentos públicos, originalmente dotados de fé pública (tanto que impressos em papel de segurança), foram desmaterializados pelo próprio interessado e, nesse processo de conversão, perderam-se as características ínsitas aos documentos eletrônicos: autenticidade e integridade.

E nem se alegue que as cópias simples digitalizadas devem ser consideradas título digitalizado na forma do art. 208, §2º, do Prov. 149/2023 CNJ, haja vista que a digitalização simples não conta sequer com assinatura eletrônica, tampouco observa os padrões técnicos e critérios estabelecidos no artigo 5º do Decreto n. 10.278/2020.

Logo, os documentos expedidos originalmente em papel devem ser apresentados fisicamente perante a serventia. Alternativamente, para que esses mesmos documentos possam sejam admitidos em formato eletrônico, deverão ser desmaterializados por qualquer notário ou registrador, gerados em PDF/A e assinados por ele, seus substitutos ou prepostos, tudo em consonância com o disposto no art. 208, §1º, IV, do Prov. 149/2023 CNJ.

Nas Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a matéria vem disciplinada nos itens 365 e seguintes do Capítulo XX:

“365. A postagem e o tráfego de traslados e certidões notariais e de outros títulos, públicos ou particulares, elaborados sob a forma de documento eletrônico, para remessa às serventias registrais para prenotação (Livro nº 1 Protocolo) ou exame e cálculo (Livro de Recepção de Títulos), bem como destas para os usuários, serão efetivados por intermédio da Central Registradores de Imóveis.

366. Os documentos eletrônicos apresentados aos serviços de registro de imóveis deverão atender aos requisitos da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil) e à arquitetura e-PING (Padrões de Interoperabilidade de Governo Eletrônico) e serão gerados, preferencialmente, no padrão XML (Extensible Markup Language), padrão primário de intercâmbio de dados com usuários públicos ou privados e PDF/A (Portable Document Format/Archive), ou outros padrões atuais compatíveis com a Central de Registro de Imóveis e autorizados pela Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo.

(…)

366.5. A recepção de instrumentos públicos ou particulares, em meio eletrônico, quando não enviados sob a forma de documentos estruturados segundo prevista nestas Normas, somente será admitida para o documento digital nativo (não decorrente de digitalização) que contenha a assinatura digital de todos os contratantes.”

Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE a dúvida suscitada para manter os óbices registrários, afastando apenas a exigência de retificação da escritura de inventário e partilha para constar a relação dos bens atribuídos ao quinhão de cada herdeiro.

Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.

Oportunamente, ao arquivo. P.R.I.C.

São Paulo, 05 de março de 2025.

Renat Lima Zanetta

Juíza de Direito 

(DJe de 07.03.2025 – SP)