1ª VRP|SP: Documento de identidade. Atos registrários. CNH (Carteira Nacional de Habilitação), dentre outros documentos regidos por lei. Princípio da legalidade. Aceitação compulsória destes documentos. Caráter normativo.

Processo 0020908-26.2010.8.26.0100

(100.10.020908-3)

CP 217

Pedido de Providências – Registro de Imóveis

Maria de Lurdes Camilini Capelão

VISTOS.

Cuida-se de pedido de providências formulado por Maria de Lurdes Camilini Capelão, que se insurge contra a recusa do 14º Oficial Registro de Imóveis em aceitar a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) como documento hábil a comprovar o RG, RNE e o CPF para fins de retificação de registro imobiliário.

Aduz que, na constância do casamento com Adérito Capelão, recebeu, por escritura lavrada nas notas do 18º Tabelião da Capital, direitos sobre o imóvel situado na Av. Bosque da Saúde, nº 1931 e 1933, o que foi objeto da averbação nº 22, na inscrição nº 9004, do 14º Registro de Imóveis.

E que, necessitando aperfeiçoar os dados qualificativos de Adérito (RNE, CPF e casamento), apresentou a CNH ao Oficial de Registro de Imóveis, que a recusou exigindo a apresentação das vias originais do RG e do CPF. Assim, reputa indevida a negativa por violar o art. 159, do Código Brasileiro de Trânsito, e pede o deferimento do averbação. Informações do 14º Oficial de Registro de Imóveis às fls. 16/18.

O Ministério Público opinou pelo indeferimento do pedido (fls. 21). A fim de uniformizar o entendimento, determinou-se a oitiva dos demais Oficiais de Registro de Imóveis (fls. 23/30, 31, 32/34, 36, 37, 38, 39/42, 43, 44, 45, 46/51, 52, 53, 54, 55, 56/57 e 58).

É O RELATÓRIO.

FUNDAMENTO E DECIDO.

O cerne da questão está em saber se a CNH pode ser utilizada como documento hábil a comprovar a identificação e qualificação das partes para os atos de registro de imóveis em substituição ao RG, RNE e CPF.

Em virtude da relevância do tema, foram ouvidos os 18 Oficiais de Registro de Imóveis que tiveram a oportunidade de dizer a forma como vinham agindo e por quê. E, sopesados todos os primorosos argumentos trazidos aos autos, conclui-se que a resposta à indagação há de ser positiva.

Os Oficiais que entendem que a CNH não pode ser utilizada para os fins ora questionados, sustentam, em suma, que ela possui dois tipos de elementos: primários e secundários. Primários são os produzidos juntamente com sua elaboração como a fotografia, nome, assinatura e nº da carteira de habilitação; secundários, os provenientes de fontes auxiliares utilizadas no cadastramento como o nº do RG, do CPF e a data e nascimento. E concluem, com supedâneo na segurança que os serviços de registros públicos devem oferecer, que apenas os elementos primários poderiam ser utilizados para os atos de registro.

O argumento, embora respeitável, cede diante de expresso comando legal em sentido oposto. O art. 159, da Lei nº 9.503/97, diz que: “A Carteira Nacional de Habilitação, expedida em modelo único e de acordo com as especificações do CONTRAN, atendidos os pré-requisitos estabelecidos neste Código, conterá fotografia, identificação e CPF do condutor, terá fé pública e equivalerá a documento de identidade em todo o território nacional.” (grifouse). Como se vê, a CNH é, por força de lei, equiparada a documento de identidade em todo território nacional.

Observe-se que a Lei não limitou os casos em que ela pode ser utilizada como documento de identidade e, como destacou – de forma irretocável – o Oficial do 7º Registro de Imóveis, a equiparação refere-se ao documento como um todo, sem distinguir entre os elementos primários e secundários.

As Normas de Serviço da E. Corregedoria Geral da Justiça também trataram do tema. O item 21.1, do Capítulo XVII, confere à CNH o status de documento de identidade: “Considera-se documento de identidade a carteira de identidade expedida pelos órgãos de identificação civil dos Estados, a Carteira Nacional de Habilitação instituída pela Lei nº 9.503/97, passaporte expedido pela autoridade competente e carteira de exercício profissional emitida pelos Órgãos criados por Lei Federal, nos termos da Lei nº 6.206/75, vedada a apresentação destes documentos replastificados.” (grifou-se).

No capítulo XIV, o item 60 diz que: “É obrigatória a apresentação do original de documento de identidade (Registro Geral; Carteira Nacional de Habilitação, modelo atual, instituído pela Lei número 9.503/97, com o prazo de validade em vigor; carteira de exercício profissional expedida pelos entes criados por Lei Federal, nos termos da Lei nº 6.206/75 ou passaporte que, na hipótese de estrangeiro, deverá estar com prazo do visto não expirado) para a abertura de ficha-padrão, vedada a apresentação destes documentos replastificados. Os tabeliães estão autorizados a extrair, às expensas dos interessados, cópia reprográfica do documento de identidade apresentado para preenchimento da ficha-padrão, na hipótese do próprio interessado não fornecer a cópia autenticada. Em qualquer caso, a cópia será devidamente arquivada com a ficha-padrão para fácil verificação.”

Como se vê, além do comando expresso do art. 159, da Lei nº 9.503/97, também as Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça equiparam a CNH – ao lado de outros documentos como carteira de exercício profissional expedida pelos entes criados por Lei Federal e o passaporte – a documento de identidade, exigindo, para a aceitação, que tenha sido instituída nos moldes da Lei nº 9.503/97 e que esteja com prazo de validade ainda em vigor.

Em relação ao art. 176, § 1º, II, 4, “a”, e seu § 1º, III, 2,”a”, da Lei de Registros Públicos, mencionados por alguns Oficiais como razão legal da recusa, note-se que a Lei nº 6.015/73 não exige a apresentação do RG emitido pela Secretaria de Segurança Pública, mas que seu número seja fornecido, o que pode ocorrer mediante a apresentação de qualquer documento a que a lei confira status de documento de identidade, como é o caso da CNH. O que importa, portanto, é certeza quanto ao número, desde que o documento que o transporte seja legalmente válido. Ao lado da questão legal, há a de ordem prática.

É fato notório que, atualmente, o cidadão utiliza-se da CNH como documento de identidade para os mais variados atos de sua vida civil, que vão desde os mais simples, como o cadastro em lojas, até os mais complexos, como a lavratura de escritura públicas de venda e compra de imóvel e até mesmo para o exercício do sagrado direito de voto. Isso passou a ocorrer a partir da instituição da CNH nos moldes da Lei nº 9.503/97, que deu origem a uma migração dos documentos que as pessoas passaram a portar e apresentar como identificadores de sua identidade.

Assim é que, no lugar do geralmente antigo RG e do cartão do CPF, tem-se apresentado a CNH, quase sempre mais atualizada, e que traz, num só documento, os dados mais relevantes dos outros dois juntos. E não seria absurdo, à vista dessa realidade, afirmar que atualmente muitas pessoas sequer sabem onde estão em seus arquivos pessoais as vias originais do RG e CPF, tamanho o desuso em que caíram. O 9º Registro de Imóveis destacou, não por acaso, que passou a admitir a CNH como instrumento hábil para a identificação das pessoas que figuram nos atos registrários por ter constatado que, na dinâmica dos dias de hoje, tem este documento sido o mais utilizado perante os tabeliães e agentes financeiros na elaboração dos negócios jurídicos que posteriormente serão levados a registro (fl. 44).

Ainda para ressaltar a utilização da CNH como documento de identidade, relembre-se que nas recentes eleições deste ano, o E. Supremo Tribunal Federal, ao apreciar o pedido de liminar feito na ADI nº 4467, permitiu que o eleitor votasse com o título eleitoral ou com qualquer outro documento oficial com foto, rol em que se encontra a CNH. Essa irreversível constatação não pode ser ignorada a pretexto de uma suposta e não comprovada insegurança na prestação dos serviços dos registros de imóveis, sob pena de se adotar posicionamento retrógrado na contramão da realidade.

A admissão da CNH enquanto documento comprobatório de identidade não significa que os pedidos de registro ou de averbação feitos junto ao Registro de Imóveis serão invariavelmente acolhidos, mas apenas que o Oficial não poderá recusar a prática do ato sob o argumento de que a CNH não é documento hábil a comprovar a identidade. Frise-se: o que se veda é a injustificada recusa pelo simples fato de se tratar de CNH, o que não suprime do Oficial de Registro de Imóveis o direito-dever de qualificar os títulos.

No que diz respeito à segurança dos atos de registro praticados mediante a apresentação da CNH como documento de identidade, oportuna a consideração do 17º Oficial de Registro de Imóveis no sentido de que não há notícias de que seu uso esteja servindo para fraudes por alguma suposta vulnerabilidade, de modo que seu uso não consiste, por si só, ameaça real à segurança do sistema registral imobiliário (fl. 57). Some-se a isso o fato de que a maioria dos 18 Oficiais de Registro de Imóveis ouvidos vêm admitindo a utilização da CNH e esta Corregedoria Permanente não recebeu qualquer reclamação nesse sentido.

É certo que, como bem ponderado pelo 1º Oficial de Registro de Imóveis, no caso de fundada dúvida quanto à autenticidade da CNH, outros documentos poderão ser exigidos, o que não pode ser confundido com imprestabilidade da CNH para comprovar a identidade, pois a eiva, nesses casos, reside na autenticidade do documento, e não neste em si, fato que pode igualmente atingir quaisquer outros como a cédula de identidade do RG, que demandaria igual cautela do Oficial.

Verifica-se, em conclusão, que a CNH, por expressa disposição legal (art. 159, da Lei nº 9.503/97), goza de fé pública e equivale a documento de identidade em todo o território nacional, de modo que, apresentada em sua via original ou em cópia autenticada e dentro do prazo de validade, não pode ser recusada pelo Oficial de Registro de Imóveis.

Entendimento contrário implicaria negativa de vigência ao art. 5º, II, da Constituição Federal, pois, de acordo com o princípio da legalidade nele descrito, ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. E, como há lei federal que confere à CNH o status de documento de identidade, sua recusa como tal violaria não só a Lei nº 9.503/97, mas o próprio art. 5, II, da Lei Maior. Fixadas tais premissas, verifica-se, por conseguinte, que a recusa no caso ora em exame deve ser afastada haja vista que a interessada apresentou ao Oficial cópia autenticada de CNH dentro do prazo de validade.

Posto isso, DEFIRO o pedido para afastar a recusa do 14º Oficial Registro de Imóveis e determinar a averbação requerida na inicial. Servirá esta de mandado, nos termos da Portaria Conjunta nº 01/08, da 1ª e 2ª Varas de Registros Públicos da Capital.

Tendo em vista a necessidade de se uniformizar o entendimento em prol da segurança jurídica e do interesse público, confiro a esta decisão CARÁTER NORMATIVO.

Após a remessa dos autos ao 14º Registro de Imóveis para cumprimento do mandado, dê-se ciência aos demais Oficiais de Registro de Imóveis da Capital, bem como à E. Corregedoria Geral da Justiça. Oportunamente, ao arquivo.

P.R.I.C.

São Paulo, 24 de novembro de 2010.

Gustavo Henrique Bretas Marzagão, Juiz de Direito.