As consequências da Lei 12.344/10 que aumentou para 70 anos a idade em que se torna obrigatório o regime da separação de bens no casamento: avanço ou retrocesso?
OPINIÃO
Por Christiano Cassettari*
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Dos processos de habilitação em curso e dos habilitados que ainda não casaram. 3. Da irretroatividade da lei 12.344/10. nasce a possibilidade de modificar o regime de bens para os menores de 70 anos.
1-) INTRODUÇÃO.
No dia 10 de dezembro de 2010 foi publicada a Lei 12.344, sancionada pelo presidente Lula, que está se despedindo do cargo, no dia anterior da publicação, que alterou a redação do inciso II do art. 1.641 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), para aumentar para 70 (setenta) anos a idade a partir da qual se torna obrigatório o regime da separação de bens no casamento.
A citada lei entrou em vigor na data da sua publicação, e, com a modificação, o panorama antigo e atual pode ser visto na tabela abaixo:
COMO ERA |
“Art. 1.641 do CC. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: I – das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; II – da pessoa maior de sessenta anos; III – de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.” |
COMO FICOU |
“Art. 1.641 do CC. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: I – das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos; III – de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.” |
A referida Lei teve origem no projeto de lei número 108/07, protocolado em fevereiro de 2007 pela deputada Solange Amaral do RJ, que apresentou as seguintes justificativas:
“Nos primórdios do Século XX, a expectativa de vida média do brasileiro variava entre 50 e 60 anos de idade, a Lei No. 3.071, de 1o. de janeiro de 1916, o que condicionou o legislador a estabelecer que nos casamentos envolvendo cônjuge varão maior de 60 anos e cônjuge virago maior de 50 anos deveria ser observado o Regime de Separação Obrigatória de Bens, norma expressa no inciso II do Art. 258 daquele Estatuto.
Em decorrência dos avanços da ciência e da engenharia médica, que implicou profundas transformações no campo da medicina e da genética, o ser humano passou a desfrutar de uma nova e melhor condição de vida, resultando em uma maior longevidade.
Tais mudanças induziram o legislador a aperfeiçoar o Código Civil de 1916, por intermédio da redação que substituiu o antigo Art. 256 pelo inciso II do Art. 1.641, que trata do Regime de Bens entre os cônjuges. Tal alteração estipulou que homens e mulheres, quando maiores de 60 anos, teriam, obrigatoriamente, de casar–se segundo o Regime de Separação de Bens.
Hoje, no entanto, em pleno Século XXI, essa exigência não mais se justifica, na medida em que se contrapõe às contemporâneas condições de vida usufruídas pelos cidadãos brasileiros, beneficiados pela melhoria das condições de vida urbana e rural, graças aos investimentos realizados em projetos de saúde, saneamento básico, educação, eletrificação e telefonia. Iniciativas que se traduzem em uma expectativa média de vida, caracterizada pela higidez física e mental, superior a 70 anos.
Em virtude dessa realidade, impõe–se seja alterado o inciso II do Artigo 1.641 do Código Civil Brasileiro, com o objetivo de adequá–lo a uma nova realidade, para que o Regime Obrigatório de Separação de Bens só seja exigível para pessoa maior de 70 anos. Pelas razões expostas, e por entender que esta proposição consolidará uma situação fática vivenciada por todos os brasileiros, conto com o apoiamento de nossos Pares para a aprovação desta iniciativa.”
Não concordamos com tais justificativas uma vez que não se pode atrelar essa absurda proibição que impede a escolha do regime de bens aos idosos, por conta da expectativa de vida do brasileiro ter subido ao longo do tempo. Tal justificativa parece dizer nas entrelinhas que após a expectativa de vida ninguém mais merece viver, motivo pelo qual deve ser apenado com a impossibilidade de escolher o regime de bens do casamento.
O argumento de que os idosos estão suscetíveis de serem enganados por alguém que poderia lhe dar o popular “golpe do baú”, fere um dos fundamentos da república que é o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1, inciso III, da CF, motivo pelo qual a lei é flagrantemente inconstitucional. Os idosos devem ter dignidade e não podem ser tratados como amentais somente porque completaram 70 anos.
Qual é a mudança substancial que ocorre na vida de uma pessoa de um dia para outro? Pergunto isso porque aos 69 anos 11 meses e 29 dias de vida a pessoa ainda pode escolher o regime de bens do seu casamento, mas no dia seguinte deve ser acometida por algo muito sério que a impede de escolher o regime.
Já passou da hora do Congresso Nacional lutar para retirar do Código Civil esse vergonhoso dispositivo, e não aumentar a idade nele contida. Se fosse para aumentar, nós sugeriríamos 180 anos!!!!!
Depois dessas considerações, passemos a analisar as conseqüências práticas de tal modificação.
2-) DOS PROCESSOS DE HABILITAÇÃO EM CURSO E DOS HABILITADOS QUE AINDA NÃO CASARAM.
Como o art. 1.528 do CC determina que é dever do oficial do registro civil esclarecer os nubentes a respeito dos fatos que podem ocasionar a invalidade do casamento, bem como sobre os diversos regimes de bens, se houver no cartório de registro civil algum processo de habilitação em curso, que tenha uma pessoa maior de 60 anos e menor de 70, deverá o registrador comunicar a alteração legislativa para que essa pessoa possa escolher livremente o seu regime de bens, e realizar o pacto antenupcial se lhe convier, pois na sua ausência vigorará no casamento o regime da comunhão parcial, consoante o art. 1.640 do CC (“Não havendo convenção, ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial.”)
Assim sendo, recomenda–se aos registradores civil que tomem por termo declaração dos nubentes que na falta de escolha do regime de bens vigorará o da comunhão parcial, por força do art. 1.640 do CC. Dessa forma se dá aos nubentes a liberdade para que possam escolher o melhor regime que lhes aprouverem.
Essa conduta deve ser seguida, também, quando os nubentes já tiverem obtido a certidão de habilitação para o casamento, que ainda não foi celebrado. Como a escolha do regime de bens é ineficaz até que ocorra a celebração do casamento, ela pode ser alterada até a sua efetivação, motivo pelo qual o procedimento ora descrito deve ser adotado tanto para os processos de habilitação em curso, quanto aos que já oram concluídos, mas que o casamento não foi celebrado. Por se tratar de questão privada, que compete exclusivamente aos nubentes, está dispensada a publicação de um novo edital de proclamas, que ratificasse o anterior, informando a alteração da escolha do regime. A função precípua do citado edital é de dar publicidade da realização do casamento, afim de que alguém possa opor os impedimentos matrimoniais, e não de informar qual é o regime adotado, uma vez que ninguém pode contestar a escolha realizada.
3-) DA IRRETROATIVIDADE DA LEI 12.344/10. NASCE A POSSIBILIDADE DE MODIFICAR O REGIME DE BENS PARA OS MENORES DE 70 ANOS.
Questionamento interessante que podemos fazer é se as pessoas já casadas no regime da separação obrigatória, mas que ainda não tenham 70 anos terão o regime de bens do casamento modificado.
Negativa será a resposta, pois a lei não irá retroagir para atingir o regime de bens de quem já celebrou o casamento. Porém, quem está casado no regime da separação obrigatória por conta da idade, mas ainda não completou 70 anos, poderá modificar o regime de bens do casamento.
Foi o artigo 1.639 do Código vigente, que, no § 2º, permitiu a modificação nos seguintes termos:
“É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros.”
Dessa forma, para que o regime de bens entre cônjuges possa ser modificado, devem ser observados os seguintes requisitos:
a) autorização judicial;
b) pedido formulado por ambos os cônjuges;
c) motivação do pedido;
d) demonstração da procedência das razões invocadas;
e) resguardo dos direitos dos próprios cônjuges e de terceiros.
Impõe o Código Civil, nas hipóteses descritas no artigo 1.641 o regime da separação obrigatória de bens.
“Art. 1.641 do CC. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:
I – das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;
II – da pessoa maior de sessenta anos;
III – de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.”
Para melhor elucidar a compreensão do referido artigo, apontamos quais são as causas suspensivas descritas no artigo 1.523 do Código Civil:
Art. 1.523. Não devem casar:
I – o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros;
II – a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal;
III – o divorciado, enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do casal;
IV – o tutor ou o curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou curatela, e não estiverem saldadas as respectivas contas.
Desta forma pergunta–se: é possível modificar o regime de bens quando o mesmo é imposto pela lei?
Para Débora Gozzo(1) negativa é a resposta. Afirma a citada autora que se os cônjuges tiveram que celebrar o casamento no regime da separação obrigatória, estão eles impedidos de ingressarem com a ação para modificação do regime de bens, sob pena de serem tidos como carecedores de ação.
Discordamos do pensamento acima, já que entendemos ser possível a modificação do regime de bens de pessoas casadas no regime da separação obrigatória, quando a causa que a originou for superada, sob pena de se estimular a simulação do divórcio para que um novo casamento possa ser celebrado. Sem contar que seria uma enorme injustiça com as pessoas obrigadas a casar neste regime por um motivo que já foi superado.
Este é o entendimento do enunciado 262 da III Jornada de Direito Civil, promovido pelo Conselho da Justiça Federal:
“262 – Arts. 1.641 e 1.639: A obrigatoriedade da separação de bens, nas hipóteses previstas nos incs. I e III do art. 1.641 do Código Civil, não impede a alteração do regime, desde que superada a causa que o impôs.”
A posição adotada no enunciado, da qual concordamos, inclusive, começa a aparecer em nossa jurisprudência:
EMENTA: DIREITO DE FAMÍLIA. ALTERAÇÃO DE REGIME DE BENS. POSSIBILIDADE COM ADVENTO DO ARTIGO 1639, § 2º, DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. MUTABILIDADE DO REGIME DE BENS, CUJOS EFEITOS PERDURAM DURANTE A VIGÊNCIA DO NOVO CÓDIGO CIVIL. VONTADE E DELIBERALIDADE DOS CÔNJUGES. DESAPARECIMENTO DA CAUSA QUE DETERMINOU A SEPARAÇÃO LEGAL DE BENS. INEXISTÊNCIA DE PREJUÍZOS. DIREITOS DE TERCEIROS RESGUARDADOS. (TJMG, Apelação Cível nº 1.0459.04.018578–5/001 – Comarca de Ouro Branco – Relator: Des. Brandão Teixeira, Julgamento 22/02/2005.)
O relator do presente julgado do Tribunal de Justiça De Minas Gerais, justificou sua posição da seguinte forma:
“A mutabilidade do regime de bem no casamento não importará prejuízos a terceiros, porque, além dos documentos acostados na inicial que comprovam a situação de solvência e regularidade dos apelantes, o artigo 1639, § 2º, do Código Civil, resguarda, expressamente, direitos de terceiros. Lado outro, a motivação apresentada pelos apelantes, ou seja, a valorização do trabalho direto e indireto envolvendo os cônjuges constitui fator de estabilidade e harmonia entre os cônjuges, o que dignifica e qualifica positivamente os cônjuges, a família e a sociedade em que estão inseridos. Por último, a causa para imposição legal do regime de separação de bens, ou seja, a menoridade da virago já não mais existe, não havendo que se falar em eventuais prejuízos já que a procedência do pedido não importará em prejuízos à virago nem tampouco à terceiros, cujos direitos estão resguardados.”
O referido posicionamento também foi adotado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:
REGIME DE BENS DO CASAMENTO – ALTERACAO – AUSENCIA DE PREJUIZO – POSSIBILIDADE. ALTERAÇÃO DE REGIME DE BENS – Defere–se, a ambos os cônjuges, considerando legítimos os motivos do pleito, ante a imposição de regime de separação obrigatória. Ausência de prejuízos a quem quer que seja, ressalvados os direitos de terceiros e do Fisco, já verificados. Exceção e faculdade do artigo 1639 parágrafo 2º do Novo Código Civil. Apelo provido. (TJRJ, APELACAO CIVEL 2003.001.24605, Relator DES. SEVERIANO IGNACIO ARAGAO – Julgamento: 15/10/2003 – DECIMA SETIMA CAMARA CIVEL)
Para o Desembargador Luiz Felipe Brasil dos Santos, as pessoas casadas no regime da separação obrigatória podem modificar o regime de bens desde que tenha cessado o motivo que a originou:
“Nesse caso, tenho que nenhuma razão haverá que impeça a mudança do regime de bens, uma vez desaparecido, por circunstância superveniente, qualquer potencial prejuízo a terceiro, o que é a justificativa que impõe aquele regime.”(2) Rolf Madaleno(3), também entende ser possível a modificação do regime de bens de quem é casado no regime da separação obrigatória.
Em razão do Código Civil impor o regime da separação obrigatória nas hipóteses descritas no artigo 1.641, não pode ser modificado o regime de bens nos referidos casos descritos na norma, que inclui as hipóteses do artigo 1.523 do citado diploma legal.
Assim, não poderá haver modificação do regime de bens:
a-) se, pelo menos, um dos cônjuges for maior de 70 anos (depois da mudança), pois se fossem casar não teriam liberdade de escolha;
b-) se um dos cônjuges for curador do outro, conforme permite o artigo 1.775 do Código Civil, não poderá ser modificado o regime, até que a mesma seja extinta e as contas forem prestadas pelo curador.
Dessa forma, verifica–se que se a pessoa está casada no regime da separação obrigatória e ainda não tem 70 anos, desapareceu, com a publicação da Lei 12.334/10, o motivo que originou o citado regime, motivo pelo qual até chegarem nessa idade, as pessoas poderão modificar o regime de bens, mediante ação judicial, motivando o pedido na alteração legislativa em comento.
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Notas:
(1) GOZZO, Débora. Patrimônio no casamento e na união estável. In: ALVIM. Arruda; CÉSAR, Joaquim Portes de Cerqueira; Rosas, Roberto. Aspectos controvertidos do novo Código Civil. São Paulo: RT, 2003, p. 146.
(2) SANTOS, Luiz Felipe Brasil dos. A mutabilidade dos regimes de bens. Disponível em http://www.migalhas.com.br, acesso em 23/01/2007.
(3) MADALENO, Rolf. Do regime de bens entre os cônjuges. In: DIAS, Maria Berenice; e PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de Família e o novo Código Civil. 4º ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 173.
*O Autor e Doutorando em Direito Civil pela USP; Mestre em Direito Civil pela PUC/SP; Especialista em Direito Notarial e Registral pela PUC–MG; Diretor Cultural do IBDFAM–/SP e Autor do livro “Separação, divórcio e inventário por escritura pública: teoria e prática”, publicado pela Editora Método
Fonte: Boletim INR nº 4346 – Grupo Serac – São Paulo, 24 de Dezembro de 2010