TJSP: Arrolamento – Companheiro sobrevivente – Reconhecimento incidental da união estável, à vista das provas produzidas nos autos – Possibilidade – Exclusão do colateral – Inaplicabilidade do art. 1790, III, do CC, por afronta aos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana e leitura sistematizada do próprio Código Civil – Equiparação ao cônjuge supérstite – Precedentes – Agravo improvido.
EMENTA
Arrolamento. Companheiro sobrevivente. Reconhecimento incidental da união estável, à vista das provas produzidas nos autos. Possibilidade. Exclusão do colateral. Inaplicabilidade do art. 1790, III, do CC, por afronta aos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana e leitura sistematizada do próprio Código Civil. Equiparação ao cônjuge supérstite. Precedentes. Agravo improvido. (TJSP – Agravo de Instrumento nº 609.024-4/4 – São Paulo – 8ª Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Caetano Lagrasta – Julgado em 06.05.2009)
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de AGRAVO DE INSTRUMENTO n° 609.024-4/4-00, da Comarca de SÃO PAULO, em que é agravante IRINEU DEL VECCHIO sendo agravado ESPÓLIO de NILZA DEL VECCHIO, representado por seu inventariante JOÃO STELMOCKAS:
ACORDAM, em Oitava Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “POR MAIORIA, NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO, CONTRA O VOTO DO 2° JUIZ.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Desembargadores RIBEIRO DA SILVA e LUIZ AMBRA.
São Paulo, 06 de maio de 2009.
CAETANO LAGRASTA – Presidente e Relator
RELATÓRIO E VOTO
Vistos.
Trata-se de Agravo de Instrumento interposto por I.D.V. contra a r. decisão de fl. 38/40, que reconheceu incidentalmente a união estável vivida entre o inventariante da ação de arrolamento e a sua irmã falecida N.D.V., atribuindo a totalidade dos bens ao companheiro.
Alega o agravante que a união estável deverá ser reconhecida em ação própria, por se tratar de questão de alta indagação. Pleiteia, em síntese, reserva dos bens adquiridos por esforço próprio e por herança pela inventariada, anulação das doações em favor da sua filha.
Recurso tempestivo, isento de preparo, processado sem a liminar, com informações do Juízo (fl. 319). A d. Procuradoria de Justiça opinou pelo provimento (fl.321/323).
É o relatório.
Julgamento conjunto com a apelação n° 630.724.4/8.
O recurso não merece provimento.
É possível o reconhecimento incidental da união estável na ação de arrolamento, eis que, decorre da própria Constituição Federal, em seu art. 226/ R 3º e há prova suficiente de sua existência. O próprio agravante em diversos momentos acena para existência da relação, conforme se vê a seguir: Na gestão do concubinato o sr. J. inventariante adquiriu os imóveis (…) cabe salientar que estes imóveis adquiridos na constância do concubinato não foram apresentados pelo inventariante no arrolamento e nem pelo curador provisório na interdição (fl. 82). Dessa forma, não há controvérsia quanto ao fato do inventariante e a falecida terem convivido com ânimo de constituição de família, por décadas.
Além disso, nos autos de interdição da falecida, há reconhecimento expresso da relação e da colaboração moral e financeira do agravado para a aquisição dos bens em seu nome, de tal sorte que a condição de companheiros entre o inventariante e a falecida N.D.V. deve ser declarada.
Há que se verificar, a partir de então, a aplicabilidade do artigo 1790, III, do CC. É função do julgador, ao exercer a atividade hermenêutica, procurar entre as interpretações possíveis de uma norma, aquela que está em consonância com a Constituição e seus princípios, afastando em qualquer processo, a incidência daquelas que afrontam os preceitos fundamentais. A atuação do Judiciário deve ser no sentido de buscar a harmonia do sistema jurídico e a adequação da Justiça à realidade social. Inegável que o tratamento sucessório diferenciado dado ao companheiro sobrevivente em comparação com o cônjuge sobrevivente é discriminatório e não deve prevalecer diante da isonomia entre união estável e o casamento, assegurada pelo citado art. 226, § 3o, da CF, devendo, a sucessão do companheiro observar a mesma disciplina da sucessão legítima do cônjuge.
Aplicam-se, analogicamente, as regras do art. 1829, III, do CC, reconhecendo-se que o companheiro sobrevivente é herdeiro necessário, herdando, desta maneira, os bens particulares da falecida, nos quais não tem meação.
Nesse sentido, a Jurisprudência desta C. Corte: A questão trazida acerca da inconstitucionalidade do art. 1790, III, do CC encerra grande celeuma, dada a incongruência entre o dispositivo legal em comento e a norma constitucional que assegura igualdade de proteção ao companheiro na entidade familiar constituída pela união estável, em relação ao cônjuge (art. 226, § 3o, da CF). Sobre o tema esclarece Silvio de Salvo Venosa: “O inciso JE do art. 2º, que, na realidade, por questão (lógica, deveria ser o inciso I, equiparou o companheiro sobrevivente ao cônjuge supérstite, na ordem de vocação – estabelecido pelo art. 1.603. ascendentes ou descendentes (bem como de cônjuge, como adiante se afirma), o companheiro será herdeiro da totalidade dos bens do falecido, alijando assim os colaterais e o estado da herança” Alem disso, como assevera Sérgio Gischkow Pereira, “é razoável sustentar, nesse particular, a permanência da Lei n° 9.278/96, por aplicação do art. 2º, § 2º, da Lei de Introdução do Código Civil”, considerado o fato de que o novo Código Civil revoga expressamente apenas o próprio Código Civil de 1916 e parte do Código Comercial de 1850. Não se justifica, assim, a desigualdade de tratamento dispensado ao companheiro em relação ao cônjuge, colocando-o em posição de inferioridade. A respeito vale lembrar o artigo 5o da Lei de Introdução ao Código Civil: “A aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Por tudo isso, em atenção ao princípio da especialidade, o critério aplicável à espécie é o da prevalência da norma especial sobre a geral (Lex specialis derogat legi generali), ante a maior relevância jurídica dos elementos nela contidos, visando à adaptação da justiça às articulações da realidade social (Agravo de Instrumento n° 540.323-4/7-00, rei. PAULO ALCIDES, Ia Câmara “A” de Direito Privado, 15/04/08). Ainda: Sucessão da companheira – Incompatibilidade do artigo 1790 do Código Civil com o sistema jurídico de proteção às entidades familiares e o direito fundamental à herança – Impossibilidade da legislação infraconstitucional alijar direitos fundamentais anteriormente assegurados a partícipes de entidades familiares constitucionalmente reconhecidas, em especial o direito à herança – Posição jurisprudencial que se inclina no sentido da inaplicabilidade do ilógico art. 1.790 do Código Civil. Recurso provido para reconhecer a meação da companheira aos ativos deixados pelo autor da herança, mas afastá-la da concorrência com o descendente menor, aplicando-se o regime do artigo 1-829, I, do Código Civil (AI n° 567.929-4/0-00, 4ª Câmara de Direito Provado, Rei. Des. FRANCISCO LOUREIRO, j. 11/09/2008). Agravo. Arrolamento de bens. Morte do companheiro. Ausência de ascendentes ou descendentes. Existência, porém, de colaterais noticiada pela própria companheira. União estável iniciada na vigência da lei 8.971/94 e que perdurou até o falecimento do companheiro. Fato ocorrido em 2004. Inaplicabilidade da disciplina sucessória prevista no Novo Código Civil. Atribuição à companheira sobrevivente do mesmo status hereditário que a lei atribui ao cônjuge supérstite. Totalidade da herança devida à companheira, afastando da sucessão os colaterais e o estado. Inaplicabilidade da norma do art. 1.790, m, do Código Civil em vigor. Recurso provido. (AI 386.577.4/3-00, j . 02.06.2005, Relator: Des. JUSTINO MAGNO ARAÚJO, v.u.).
Também se manifestou sobre o assunto, Tribunal de Justiça do RS: Agravo de Instrumento. Inventário. Sucessão da companheira. Abertura da sucessão ocorrida sob a égide do novo código civil. Aplicabilidade da nova lei, nos termos do artigo 1.787. Habilitação em autos de irmão da falecida. Caso concreto, em que merece afastada a sucessão do irmão, não incidindo a regra prevista no 1.790, m, do CCB, que confere tratamento diferenciado entre companheiro e cônjuge. Observância do princípio da equidade. Não se pode negar que tanto à família de direito, ou formalmente constituída, como também àquela que se constituiu por simples fato, há que se outorgar a mesma proteção legal, em observância ao princípio da eqüidade, assegurando-se igualdade de tratamento entre cônjuge e companheiro, inclusive no plano sucessório. Ademais, a própria Constituição Federal não confere tratamento iníquo aos cônjuges e companheiros, tampouco o faziam as Leis que regulamentavam a união estável antes do advento do novo Código Civil, não podendo, assim, prevalecer a interpretação literal do artigo em questão, sob pena de se incorrer na odiosa diferenciação, deixando ao desamparo a família constituída pela união estável, e conferindo proteção legal privilegiada à família constituída de acordo com as formalidades da lei. Preliminar não conhecida e recurso provido (Agravo de Instrumento N°70020389284, Sétima Câmara Cível, Relator: RICARDO RAUPP RUSCHEL, Julgado em 12/09/2007).
Confiram-se as considerações de ZENO VELOSO sobre o tema: As famílias constituídas pelo afeto, pela convivência, são merecedoras do mesmo respeito e tratamento dado às famílias matrimonializadas. A discriminação entre elas ofende, inclusive, fundamentos constitucionais. O art. 1790 desiguala as famílias, ê dispositivo passadista, retrógrado, perverso. Deve ser eliminado o quanto antes. O Código ficaria melhor – e muito melhor – sem essa excrecência. (in Código Civil Comentado, coordenado por RICARDO FIÚZA e REGINA BEATRIZ TAVARES DA SILVA, 6a ed., Saraiva, 2008).
Para INÁCIO DE CARVALHO NETO: o principal defeito do Código em matéria sucessória diz respeito justamente à sucessão do companheiro. Embora explicável por razões históricas, o fato é que o novo Código consagrou um retrocesso inaceitável ao direito sucessório dos companheiros, além de uma infeliz distinção em relação ao direito dos cônjuges. Urge suprimir a distinção, igualando, nessa matéria, cônjuge e companheiro, já que nada justifica a diferença de tratamento. Daí nossa proposta, ao final deste trabalho, de revogação do art. 1790 do novo Código, com acréscimo da referência ao lado do cônjuge em todos os dispositivos que tratam da sucessão deste, inclusive acrescendo o companheiro como herdeiro necessário (in Direito Sucessório do Cônjuge e do Companheiro, ed. Método, 2007).
Sobre o tema, os Professores FLÁVIO TARTUCE e JOSÉ FERNANDO SIMÃO, observam que: o tratamento do cônjuge como herdeiro e do companheiro são absolutamente distintos. Essa diferença de tratamento tem por conseqüência rebaixar a família decorrente da união estável, como se ainda pudésemos falar em uma família legítima (in Direito Civil vol 6 – Direito das Sucessões, 2a ed., Método, p. 250).
Ainda, no “I ENCONTRO DOS JUÍZES DE FAMÍLIA DO INTERIOR DE SÃO PAULO, deliberou-se, por maioria de 2/3 dos presentes, os seguintes enunciados, referentes à sucessão do companheiro: ENUNCIADO 49. O art. 1.790 do Código Civil, ao tratar de forma diferenciada a sucessão legítima do companheiro em relação ao cônjuge, incide em inconstitucionalidade, pois a Constituição não permite diferenciação entre famílias assentadas no casamento e na união estável, nos aspectos em que são idênticas, que são os vínculos de afeto, solidariedade e respeito, vínculos norteadores da sucessão legítima. ENUNCIADO 50. Ante a inconstitucionalidade do art. 1.790, a sucessão do companheiro deve observar a mesma disciplina da sucessão legítima do cônjuge, com os mesmos direitos e limitações, de modo que o companheiro, na concorrência com descendentes, herda nos bens particulares, não nos quais tem meação. E: ENUNCIADO 52. Se admitida a constitucionalidade do art. 1790 do Código Civil, o companheiro sobrevivente terá direito à totalidade da herança deixada pelo outro, na falta de parentes sucessíveis, conforme o previsto no inciso IV, sem a limitação indicada na cabeça do artigo.
Por fim, observa-se que a Câmara dos Deputados tem dois projetos de lei (n° 276/2007 e o 508/2007) que visam regulamentar a situação, sendo que, neste segundo a sugestão é no sentido de suprimir o referido artigo, equiparando o direito sucessório do companheiro sobrevivente ao do cônjuge supérstite.
Desta forma, não há necessidade do inventariante recorrer às vias ordinárias para o reconhecimento da união estável e, assim, possibilitar o desfecho do processo de arrolamento, atentando-se ao fato de que ação de reconhecimento e dissolução de união estável foi proposta pelo agravado, com sentença que julgou prejudicado o exame do recurso por falta de interesse de agir do autor, ante o reconhecimento incidental da união estável, o que gerou a Apelação n° 630.724.4/8.
Assim, mantém-se a r. decisão recorrida, permanecendo a exclusão do herdeiro colateral.
Ante o exposto, NEGA-SE PROVIMENTO ao recurso.
CAETANO LAGRASTA – Relator.
Fonte: Boletim INR nº 4347 – Grupo Serac – São Paulo, 27 de dezembro de 2010