TJ|SP: Inventário. Sucessão do companheiro. Inconstitucionalidade do art. 1790 III do CC/02. Falecida a companheira, sem deixar descendentes ou ascendentes, herda com exclusividade seu companheiro. Interpretação sistemática da atual ordem constitucional Art 1829 III CC/02 c/c 226 CF. Falecido o companheiro-herdeiro no curso do inventário, sucede-o seu filho, único herdeiro, ao qual devem ser adjudicados todos os bens inventariados, em detrimento dos colaterais da autora da herança. Recurso provido.
EMENTA
INVENTARIO. Sucessão do companheiro. Inconstitucionalidade do art 1790 III do CC/02. Falecida a companheira, sem deixar descendentes ou ascendentes, herda com exclusividade seu companheiro. Interpretação sistemática da atual ordem constitucional Art 1829 III CC/02 c/c 226 CF. Falecido o companheiro-herdeiro no curso do inventário, sucede-o seu filho, único herdeiro, ao qual devem ser adjudicados todos os bens inventariados, em detrimento dos colaterais da autora da herança. Recurso provido. (TJSP – Agravo de Instrumento nº 654.999-4/7-00 – São Paulo – 4ª Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Teixeira Leite – Julgado em 27.08.2009)
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de AGRAVO DE INSTRUMENTO n° 654.999-4/7-00, da Comarca de SÃO PAULO – FORO REGIONAL DO TATUAPÉ, em que figuram como agravante ARMANDO CORBO e agravado ESPÓLIO DE LEONOR MARQUEZINI, representada pela inventariante Dolores Marquezini Palmas:
ACORDAM, em Quarta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por votação unânime, dar provimento ao recurso.
RELATÓRIO E VOTO
Trata-se de agravo de instrumento tirado da r. decisão (fls. 261) que, aplicando a norma do art. 1790 III do Código Civil, indeferiu ao agravante, único herdeiro do companheiro falecido da autora da herança, pedido de adjudicação da totalidade dos bens inventariados.
Atribuiu-lhe apenas 1/3 da metade dos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável.
O agravante, inconformado, alega que a decisão afronta direito protegido pela Constituição Federal, porquanto a sucessão do companheiro deve ser igual à do cônjuge. E, se o companheiro, na falta de descendentes e ascendentes da autora da herança, herda com exclusividade bens comuns e particulares, a ele, agravante, devem ser adjudicados todos os bens do espólio, porque é o único herdeiro do companheiro, hoje também falecido.
Recurso processado no efeito devolutivo (fl. 265) e respondido (fls. 272/277).
Este é o relatório.
Leonor Marquezini, com quem José Corbo, pai do agravante, viveu em união estável por 20 anos, faleceu em 28.7.07 (fl. 43). O inventário foi aberto pela irmã de Leonor, Dolores Marquezini Palmas (fl. 41). José, companheiro reconhecido por sentença transitada em julgado (fls. 205/208 e 238), habilitou-se, mas faleceu logo em seguida, em 6.1.09.
Segundo defende o agravante, José, na qualidade de companheiro e inexistentes descentes ou ascendentes de Leonor, herdou com exclusividade os bens por ela deixados. Entende, portanto, pela inconstitucionalidade do art. 1790 III do Código Civil, devendo a sucessão do companheiro seguir a regra do art. 1829 III do Código Civil, sob pena de afronta à igualdade de direitos atribuída pela Constituição Federal aos cônjuges assim como aos companheiros (art. 226).
Nesse compasso, falecido José, deveria sucedê-lo o agravante, seu único herdeiro, na totalidade da herança.
A d. Magistrada entendeu pela aplicabilidade do art. 1790 III do Código Civil, atribuindo ao agravante apenas 1/3 da metade dos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável, porque concorre com as irmãs e sobrinhos da falecida, os quais herdam, com exclusividade, os bens particulares.
Pois bem.
A respeito dessa matéria, este relator mudou recentemente seu entendimento, passando a comungar da tese defendida pelo i. Desembargador Francisco Loureiro, no sentido da inconstitucionalidade do art. 1790 III do Código Civil, que retrata, hoje, o pensamento uníssono desta Câmara:
“A questão envolve o exame da compatibilidade do art. 1.790 do Código Civil com o sistema jurídico de proteção constitucional às entidades familiares e o direito fundamental à herança.
Não há por isso como abordar o tema com visão simplista e exegética do texto da lei, tirando os olhos dos valores constitucionais que iluminam todo o sistema.
4. O regime sucessório do cônjuge (art. 1.829, I e II do/CC) foi todo pensado na concorrência do viúvo com os descendentes na delação da herança, seguida de diversas exceções, baseadas nos regimes de bens do casamento. O preceito confirma a já conhecida conexão entre direitos sucessórios e relações patrimoniais entre os cônjuges, com origem na legislação italiana (Luigi Carraro, La Vocazione Leggitima Alia Successioni, Padova: CEDAM, 1.979, p. 93).
O regime de bens de casamento assume uma função supletiva de garantia do viúvo e, portanto, tem direta relação com a sua participação na herança. Pode-se afirmar, em linha geral, que o que procurou o legislador foi conferir ao cônjuge sobrevivente a posição de herdeiro concorrente com a primeira classe, no que se refere aos bens próprios, ou particulares do falecido, vale dizer, aqueles em que o viúvo não figura como meeiro, com o objetivo de garantia de seu bem estar.
Pode-se traçar o princípio de que, quanto mais garantido estiver o cônjuge pelo regime de bens do casamento, menor será a sua participação na herança. Essa, aliás, a lição de Miguel Reale, para quem quando o regime legal de bens do casamento era o da comunhão universal, tendo o cônjuge já metade do patrimônio, ficava excluída a idéia de herança. Alterado o regime legal de bens do casamento, a questão mudou de figura, havendo necessidade da criação de mecanismos, no direito sucessório, de garantia ao sobrevivente, mediante a inovação do sistema de classes concorrentes (Miguel Reale, O Projeto do Novo Código Civil, São Paulo: Editora Saraiva, 1.999, p. 18).
No que se refere à união estável, o raciocínio é inverso e foge a qualquer tentativa de sistematização ou enquadramento lógico. O companheiro poderia, em tese, ser classificado como herdeiro de quinta classe, porque só recolhe a totalidade da herança se não houver ninguém nas quatro primeiras classes (descendentes, ascendentes, cônjuge e colaterais). Tem, porém, a peculiaridade de concorrer com todas as classes que se encontram à sua frente, em relação aos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável.
Traça a cabeça do artigo – deslocado do capitulo da ordem da vocação hereditária – o universo dos bens sobre os quais incide a sucessão do companheiro, nos seguintes termos: ‘a companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável’. O preceito contradiz tudo o que o novo Código Civil projetou para a sucessão do cônjuge. O princípio é oposto. Na sucessão do cônjuge, acima estudada, a idéia é garantir a dignidade do viúvo, contemplando-o de modo inversamente proporcional ao seu regime de bens do casamento. Quanto mais recebe o cônjuge como meeiro, menos recebe como herdeiro. Já na sucessão do companheiro, de modo incompreensível, este apenas participa da sucessão do falecido quanto aos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável. Em termos diversos, concorre à herança além da meação, em posição mais favorável até mesmo do que a do cônjuge.
Em termos diversos, o companheiro, além da meação sobre os bens adquiridos a título oneroso na constância da união, receberá uma quota como herdeiro. Privilegia-se quem já está garantido por força do regime de bens conferido por lei à união estável (art. 1.725 do Código Civil). A regra padece de dupla incongruência. Primeiro, porque deixa à míngua exatamente o companheiro que não tem direito à meação em razão do regime de bens da união estável, e que mais necessitaria da herança para garantia da sua dignidade e manutenção do status quo. Segundo, porque no pólo oposto, ou seja, em relação ao companheiro cujo patrimônio foi inteiramente construído a título oneroso durante a união estável, o supérstite receberá uma quota superior à que receberia o próprio cônjuge viúvo, se casado fosse pelo regime da comunhão parcial de bens. Isso porque, em tal situação, recebe o companheiro não só a meação, como também participação na herança.
Embora casamento e união estável sejam instituições diferentes, quanto à sua constituição e quanto a alguns de seus efeitos, como, por exemplo, a necessidade de outorga uxória, a emancipação legal e a presunção de paternidade do artigo 1.597 do novo Código Civil, tais distinções decorrem exatamente da ausência de título formal do companheirismo e da necessidade de segurança das relações jurídicas frente a terceiros (Ana Luiza Maia Nevares, a Tutela Sucessória do Cônjuge e do Companheiro na Legalidade Constitucional, Renovar, p. 209).
Não se justificam as diferenças, contudo, nos pontos em que se identificam a união estável e o casamento. Tal ponto, repita-se, é o afeto entre os seus membros e a função de promoção e desenvolvimento da personalidade daqueles que a compõem. Em termos diversos, no que se refere à garantia da dignidade do viúvo, seja ele casado ou companheiro, inexiste razão lógica para o discrímen, de modo que se impõe, aqui, tratamento paritário entre as duas situações.
Diz que ‘a equiparação dos direitos dá-se em virtude do princípio da igualdade substancial, cânone do direito constitucional, cuja aplicação garante a atuação do princípio fundador do ordenamento jurídico brasileiro: a dignidade da pessoa humana’ (Ana Luiza Maia Nevares A Tutela Sucessória do Cônjuge e do Companheiro na Legalidade Constitucional, p. 238).
Uma interpretação literal e exegética do artigo 1.790 – tão ao gosto do pensamento liberal que orientou o Código de 1.916 – levaria à fácil conclusão de que o regime radicalmente distinto da sucessão do companheiro nada mais é do que a melhor expressão da norma constitucional, que não equiparou o casamento à união estável, mas, ao invés, conferiu primazia ao primeiro.
Essa conclusão, a meu ver, não pode prevalecer, sob a ótica civil-constitucional. Obvio que o casamento não se equipara à união estável, podendo gerar – como gera – direitos e deveres distintos a cônjuges e companheiros. O que se discute é a possibilidade da legislação infraconstitucional alijar, de modo tão grave, alguns direitos fundamentais anteriormente assegurados a partícipes de entidades familiares constitucionalmente reconhecidas, em especial o direito à herança.
A família, para Vicenzo Scalisi, deixa de ser uma estrutura com valor em si e somente assume valor para o direito como instrumento de promoção e desenvolvimento da personalidade individual de seus membros (La Famiglia e le famiglie, p. 274, apud Ana Luiza Maia Nevares, a Tutela Sucessória do Cônjuge e do Companheiro na Legalidade Constitucional, cit, p. 201).
A união estável é entidade familiar de estatura constitucional, tanto quanto o casamento, de modo que não há hierarquia entre ambas, ou, do dizer de Gustavo Tepedino, não há famílias de primeira e de segunda classe. (A Disciplina Civil-constitucional das Relações Familiares, Temas de Direito Civil, p. 356).
E por isso que não se admite, na autorizada lição de Gomes Canotilho, o singelo cancelamento do núcleo essencial dos direitos sociais, já realizado e efetivado por medidas legislativas, sem a concomitante criação de outros esquemas alternativos e compensatórios à preservação do bem fundamental que se pretende tutelar (JJ Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Direito da Constituição, p. 321).
A verdade é que o art. 1.790 criou situação insustentável e que agride todo o sistema jurídico. Alijou o companheiro sobrevivente da herança quanto este mais dela necessita, por não se encontrar protegido pela meação. Em contrapartida, deu ao companheiro já garantido pela meação o direito de concorrer com os descendentes, em posição superior à do próprio cônjuge.
Na lição de Karl Engish, na base de todas as regras hermenêuticas para harmonizar normas aparentemente conflitantes, figura como verdadeiro postulado o princípio da coerência da ordem jurídica (Introdução ao Pensamento Jurídico, Lisboa: Fundação Kalouste Gulbenkian, 6ª Edição, p. 313). Há, no caso, uma contradição teleológica, entre os fins que o legislador visou com determinada norma e a redação conferida ao dispositivo, a ser resolvida com interpretação prestigiando a finalidade tutelada pelo preceito.
Reconheço ser o tema polêmico e controversas as soluções da jurisprudência. Lembre-se, porém, forte corrente doutrinária no sentido de que não há distinção, em termos de afeto e dignidade, entre as famílias constituídas pelo casamento ou união estável, “razão pela parece não ser aceitável que sejam diferenciadas pelo legislador quanto à questão sucessória” (Mauro Antonini, Código Civil Comentado, diversos autores coordenados por Antônio Cezar Peluso, Manole, 2ª. Edição, p. 1.941; ver também Euclides de Oliveira, Direito de Herança, Saraiva, ps. 187/192; Zeno Veloso, Novo Código Civil Comentado, coordenação Ricardo Fiúza, Saraiva, 5ª edição, 2006, p 1485).
5. O Tribunal de Justiça de São Paulo, embora colecione julgados em sentido opostos, aparentemente começa a se inclinar no sentido da inaplicabilidade do ilógico art. 1.790 do Código Civil. Luminoso aresto desta Quarta Câmara de Direito Privado, da letra do Des. Enio Zuliani, deixou assentado o seguinte:
“União estável – Provado que o companheiro falecido deixou um único bem, adquirido na constância da união estável e mediante esforço comum, deverá ser deferida à totalidade da herança ao companheiro supérstite, quando concorre com colaterais, proibindo-se, com a não incidência do art. 1790, III, do CC, de 2002, o retrocesso que elimina direitos fundamentais consagrados, como o de equiparar a companheira e a esposa na grade de vocação hereditária [com preferência aos colaterais] – Aplicação do inciso III, do art 2o, da Lei 8971/94 e 226, § 3o, da CF” (AGRA VO DE INSTRUMENTO N° 507.284-4/6, j . 30 de agosto de 2007).
Do corpo do julgado consta passagem que vem ao encontro do que acima foi dito, ou seja, da impossibilidade de se alijar entidade de estatura constitucional de direito fundamental — herança – sem a criação de mecanismos compensatórios:
‘CRISTINA QUEIROZ em estudo comparativo de precedentes dos Tribunais Constitucionais europeus [O princípio da não reversibilidade dos direitos fundamentais sociais, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p 69], afirmou o seguinte “Concretamente, a proibição do retrocesso social determina, de um lado, que uma vez consagradas legalmente as prestações sociais, o legislador não pode depois eliminá-las sem alternativas ou compensações Uma vez dimanada pelo Estado, a legislação concretizadora do direito fundamental social, que se apresenta face a esse direito como um lei de proteção (Schutzgesetz), a ação do Estado, que se consubstanciava num dever de legislar, transforma-se num dever mais abrangente o de não eliminar ou revogar essa lei’.
Outros precedentes recentes deste Tribunal de foram no mesmo sentido:
‘ARROLAMENTO – Reconhecimento de união estável – Falecimento do companheiro que não deixou descendentes ou ascendentes – Pretensão de se afastar a concorrência dos colaterais (art. 1790, III, CC) – Aplicação da Lei 9.728/96, que não revogou o artigo 2º da Lei 8.791/94, que assegurou ao companheiro sobrevivente o mesmo status hereditário do cônjuge supérstite – Prevalência da norma especial sobre a geral. Recurso provido’ (Agravo de Instrumento n° 522.361-4/8-00 , Ia. Câmara de Direito Privado, Rel Paulo Alcides, j . 09 de outubro de 2007).
‘Impossibilidade de se conceder à companheira mais do que se casada fosse. Decisão modificada de oficio, para determinar que seja apresentado outro plano de partilha, de forma que à companheira seja reconhecido apenas o direito à meação, com repartição da outra meação entre os descendentes’ (Agravo de Instrumento no. 467.591-4/7-00 Rel Des. Grava Brasil, j . 16.01.2007).
Destaca-se, ainda, os enunciados proferidos sobre o tema, pelos Juízes de Família do Interior do Estado de São Paulo, sob coordenação da Corregedoria Geral da Justiça:
’49. O art.1790 do Código Civil, ao tratar de forma diferenciada a sucessão legítima do companheiro em relação ao cônjuge, incide em inconstitucionalidade, pois a Constituição não permite a diferenciação entre famílias assentadas no casamento e na união estável, nos aspectos em que são idênticas, que são os vínculos de afeto, solidariedade e respeito, vínculos norteadores da sucessão legitima’.
’50. Ante a inconstitucionalidade do art. 1.790, a sucessão do companheiro deve observar a mesma disciplina da sucessão legítima do cônjuge, com os mesmos direitos e limitações, de modo que o companheiro, na concorrência com descendentes, herda nos bens particulares, não nos quais tem menção‘. “(AI 567.929.4/0-00, j . 11.9.08).
Transportando esse entendimento para o caso concreto, falecida Leonor Marquezini, sem deixar descendentes ou ascendentes, herdou com exclusividade seu companheiro, José Corbo, tanto a meação relativa aos bens adquiridos na constância da união estável, quanto os bens particulares. E falecido ele, o único herdeiro da autora da herança, deve sucedê-lo seu filho, ora agravante, seu único herdeiro.
Assim, comporta deferimento o pedido formulado pelo agravante nos autos do inventário, para se lhe deferir a adjudicação de todos os bens inventariados.
Ante o exposto, dá-se provimento ao recurso.
Participaram do julgamento, os Desembargadores
Fábio Quadros e Natan Zelinschi de Arruda.
São Paulo, 27 de agosto de 2009.
TEIXERA LEITE – Relator.
Fonte: Boletim INR nº 4391 – Grupo Serac – São Paulo, 19 de Janeiro de 2011.