CGJ|SP: Processo nº 2010/108120 (Imóvel Rural. Doação em adiantamento de legitima (artigo 544 do Código Civil). Autorização do INCRA. Prescindibilidade, desde que haja o cadastramento especial e as comunicações tratados nos artigos 10 e 11 da Lei n.º 5.709/1971 e nos artigos 15 e 16 do Decreto n.º 74.965/1974).
DICOGE 1.2
PROCESSO Nº 2010/108120 – BARRETOS – OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS, TÍTULOS E DOCUMENTOS E CIVIL DE PESSOA JURÍDICA DA COMARCA DE BARRETOS
Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça,
Fátima Adi Bezerra dos Reis, de nacionalidade libanesa, incorporou, ao seu patrimônio, mediante sucessão causa mortis, advinda do falecimento de seu pai, Mohamed Adi, as propriedades plenas das frações ideais correspondentes a 16,67% dos imóveis descritos nas matrículas n.ºs 25.090 e 56.985 do Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Comarca de Barretos, e, por meio de doação realizada por sua mãe, Amne Rahal, também conhecida como Emne Adi e Amne Rahal, as nuas propriedades das frações ideais equivalentes, também, a 16,67% dos bens acima identificados (fls. 12/14 e 15/16).
O oficial registrador afirmou a desnecessidade de qualquer regularização – particularmente no tocante à doação, que dispensa, no caso concreto, prévia autorização do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) -, com fundamento na regra do § 2.º do artigo 1.º da Lei n.º 5.709/1971, pois, invocando precedente desta Corregedoria Geral da Justiça, o negócio jurídico, envolvendo ascendente e descendente, implicou adiantamento de legítima (fls. 08/09 e 10/11).
Certidões das matrículas dos bens imóveis foram exibidas (fls. 12/14 e 15/16).
Provocado pela r. decisão de fls. 19, que tratou da partilha em vida e da condição para o afastamento da restrição legal, o oficial registrador, exibindo cópias da escritura pública de doação, da escritura de retificação e ratificação e do termo de doação lavrado nos autos do inventário dos bens deixados por Mohamed Adi, tornou a sustentar a ocorrência de sucessão de legítima, embora não utilizada, nos instrumentos do negócio jurídico, a expressão partilha em vida (fls. 24, 25/30, 31/32 e 33/34).
Uma vez desconsideradas as ponderações do oficial registrador, determinou-se, com base em informação lançada nos autos (fls. 35), a regularização da doação perante o INCRA (fls. 36).
Não obstante, o oficial registrador voltou a afirmar a prescindibilidade da providência (fls. 40).
É o relatório.
OPINO.
A Constituição Federal de 1988 dispôs, no artigo 190, que “a lei regulará e limitará a aquisição ou arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira e estabelecerá os casos que dependerão de autorização do Congresso Nacional.”
De acordo com o § 2.º do artigo 1.º da Lei n.º 5.709/1971, recepcionada pela nova ordem constitucional, as restrições estabelecidas em tal lei não se aplicam aos casos de sucessão legítima, salvo se o imóvel rural incorporado por pessoa física estrangeira residente no Brasil estiver situado em área considerada indispensável à segurança nacional.
Quer dizer: excepcionada a situação ventilada na expressa ressalva legal, a aquisição de bem imóvel rural por pessoa física estrangeira independerá de autorização ou licença, se decorrente de sucessão legítima, operada, assim, por força de lei. E, aqui, a dimensão territorial do terreno será, sob qualquer aspecto, irrelevante.
Regulamentando a Lei n.º 5.709/1971, o Decreto n.º 74.965/1974, no § 2.º do seu artigo 1.º, previu que as restrições instituídas às aquisições de bem imóvel rural por pessoa física estrangeira residente no Brasil não se aplicam aos casos de transmissão causa mortis, ou seja, ampliou – para abranger a sucessão testamentária, fundada em negócio jurídico e, portanto, no princípio da autonomia privada -, as hipóteses que dispensam a autorização do INCRA e aprovação do projeto de exploração correspondente.
No entanto, o alargamento promovido pelo preceito regulamentar, de duvidosa validade, é indiferente para a solução da hipótese sob exame, na qual se enfrenta a doação de ascendente a descendentes, que, importando, à luz do artigo 544 do Código Civil, adiantamento de legítima, exigirá, por ocasião do falecimento da doadora, a colação, instituto típico da sucessão legítima (artigos 2.002 e 2.003 do Código Civil).
Em primeiro lugar, todavia, impõe realçar: inexistiu partilha em vida – situação tratada no artigo 2.018 do Código Civil de 2002 e, antes, no artigo 1.776 do Código Civil de 1916 -, mas, valoradas as vontades manifestadas e as circunstâncias negociais – nota distintiva do negócio jurídico e elemento caracterizador da declaração de vontade(1) -, doação de ascendente a descendentes, com a qual aquela não se confunde, malgrado as similitudes existentes (ora, ambas – excepcionadas, quanto à doação, as hipóteses aludidas nos artigos 2.005, 2.010 e 2.011 do Código Civil -, representam antecipação de legítima).
Contudo, reafirmo, escorado na lição de Eduardo de Oliveira Leite: “a partilha em vida não é doação, nem testamento, ainda que o autor da herança possa lançar mão dessas formas para exteriorizar a sua vontade.”(2)
Antes dele, Carlos Maximiliano, para quem partilha em vida é um negócio jurídico sui generis, uma doação toda especial, com peculiaridades próprias(3), assentou: “no caso que vulgarmente denominam doação-partilha não existe dádiva, porém inventário antecipado em vida; não se dá colação; rescinde-se ou corrige-se a partilha, quando ilegal ou errada.”(4)
O Superior Tribunal de Justiça, ao abordar o tema, em dois julgamentos – o primeiro, antes do novo Código Civil, e o último, após a sua entrada em vigor -, acedeu à compreensão distintiva, afastando a equiparação da partilha em vida à doação (Recurso Especial n.º 6.528/RJ, relator Ministro Nilson Naves, julgado em 11.06.1991; Recurso Especial n.º 730.483/MG, relatora Ministra Nancy Andrighi, julgado em 03.05.2005).
Portanto, o precedente mencionado nestes autos, objeto do processo CG n.º 1.953/2001, é inaplicável ao caso vertente, pois envolveu partilha em vida (fls. 10). De todo modo, chega-se, in concreto, ao mesmo resultado.
Se a doação ocorrida, de ascendente a descendentes, implicou adiantamento de legítima ou, para utilizar a expressão legal, eleita em fina sintonia com a diretriz de operacionalidade do novo Código Civil, “adiantamento do que lhes cabe por herança” – porquanto não dispensada expressamente a colação (artigos 2.005 e 2.006 do Código Civil) -, não se justifica a imposição das restrições tratadas na Lei n.º 5.709/1971 e no Decreto n.º 74.965/1974, embora o rol de descendentes-donatários seja integrado por uma pessoa física estrangeira.
A aplicação da analogia legis, então integradora do Direito, conduz a tal conclusão.
Consoante Carlos Maximiliano, “os fatos de igual natureza devem ser regulados de modo idêntico. Ubi eadem legis ratio, ibi eadem legis dispositivo; ‘onde se depare razão igual à da lei, ali prevalece a disposição correspondente, da norma referida’: era o conceito básico da analogia em Roma.”(5)
Vossa Excelência, por sua vez, esclareceu, ao cuidar da interpretação analógica, que se trata de espécie de interpretação extratextual fundada “no argumento a simili ou a pari ratione, segundo o qual, de idênticos antecedentes, inferem-se idênticos consequentes”, quer dizer, “a razão que inspirou a produção de uma norma é suficiente para disciplinar, também e de maneira idêntica, outros casos semelhantes, além daqueles expressamente previstos.”(6)
Logo, se a doação enfocada vale “como avanço de legítima”(7), tanto que demandará, futuramente, ao ser aberta a sucessão da doadora, a colação – a “restituição, ao monte, das liberalidades recebidas em vida, para obter-se a igualdade dos quinhões hereditários, ao se realizar a partilha”(8) -, inexiste fundamento lógico para, considerado o tratamento dado à sucessão legítima, vedá-la, se a área do imóvel rural objeto da doação exceder a 50 (cinquenta) módulos de exploração indefinida (MEI), ou para condicionar a sua validade à prévia autorização do INCRA, caso a área territorial esteja compreendida entre 3 (três) e 50 (cinquenta) MEI.
Na realidade, antecipou-se os efeitos da sucessão legítima e nem mesmo a possibilidade de doação inoficiosa – porque, ao representar violação da legítima dos herdeiros necessários, determinará a redução, a repercutir sobre o excesso da doação (artigo 2.007 do Código Civil) – ou de renúncia e exclusão da sucessão por indignidade – porque ambas não dispensam a conferência dos bens recebidos (artigo 2.008 do Código Civil) -, autorizam desfecho diverso.
Se as restrições impostas pela Lei n.º 5.709/1971 e pelo Decreto n.º 74.965/1974 são inaplicáveis para as sucessões causa mortis deferidas por força de lei, também o são para as doações de ascendentes a descendentes, se importarem adiantamento do que lhes cabe por herança, pois, embora estribadas em negócio jurídico inter vivos e, assim como a sucessão testamentária, no princípio da autonomia privada, apenas antecipam os efeitos da sucessão legítima e, como esta, fundamentam-se nos vínculos de família e visam à tutela da unidade e da solidariedade familiar.
Agora, o descarte das restrições legais não libera os registradores do cadastramento especial e das comunicações mencionados nos artigos 10 e 11 da Lei n.º 5.709/1971 e nos artigos 15 e 16 do Decreto n.º 74.965/1974: ora, tais procedimentos não se qualificam como restrições, mas se destinam a viabilizar o controle das áreas rurais em poder de estrangeiros residentes no Brasil, inclusive para os fins do artigo 12 da Lei n.º 5.709/1971 e do artigo 5.º do Decreto n.º 74.965/1974.
Pelo todo exposto, o parecer que, respeitosamente, submeto à elevada apreciação de Vossa Excelência é no sentido de que:
a) as restrições estabelecidas na Lei n.º 5.709/1971 e no Decreto n.º 74.965/1974 não se aplicam às doações que importem adiantamento de legítima (artigo 544 do Código Civil), que, no entanto, uma vez destinadas a estrangeiros residentes no Brasil, exigirão o cadastramento especial e as comunicações tratados nos artigos 10 e 11 da Lei n.º 5.709/1971 e nos artigos 15 e 16 do Decreto n.º 74.965/1974; e
b) as aquisições das nuas propriedades das frações ideais correspondentes a 16,67% dos imóveis rurais descritos nas matrículas n.ºs 25.090 e 56.985 do Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Comarca de Barretos, consumadas por meio de doação realizada por Amne Rahal – também conhecida como Emne Adi e Amne Rahal -, em favor de sua filha Fátima Adi Bezerra dos Reis, libanesa, prescindem da regularização anteriormente determinada e, particularmente, da autorização do INCRA (fls. 36) – assim como as aquisições decorrentes da sucessão causa mortis, advindas do falecimento de Mohamed Adi -, porquanto representam adiantamento de legítima.
Sub censura.
São Paulo, 13 de março de 2012.
(a) Luciano Gonçalves Paes Leme
Juiz Auxiliar da Corregedoria
DECISÃO: Aprovo o parecer do MM. Juiz Auxiliar da Corregedoria e, por seus fundamentos, que adoto, determino:
a) as restrições estabelecidas na Lei n.º 5.709/1971 e no Decreto n.º 74.965/1974 não se aplicam às doações que importem adiantamento de legítima (artigo 544 do Código Civil), que, porém, destinadas a estrangeiros residentes no Brasil, exigirão o cadastramento especial e as comunicações tratados nos artigos 10 e 11 da Lei n.º 5.709/1971 e nos artigos 15 e 16 do Decreto n.º 74.965/1974; e
b) as aquisições das nuas propriedades das frações ideais correspondentes a 16,67% dos bens imóveis rurais descritos nas matrículas n.ºs 25.090 e 56.985 do Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Comarca de Barretos, oriundas de doação realizada por Amne Rahal em favor de sua filha Fátima Adi Bezerra dos Reis, libanesa, prescindem da regularização antes determinada.
Publique-se.
São Paulo, 06 de março de 2012.
(a) JOSÉ RENATO NALINI
Corregedor Geral da Justiça. (D.J.E. de 16.03.2012)