TJ|SC: Apelação cível. Suscitação de dúvida. Parcelamento do solo. Impugnação ministerial no sentido da necessidade de loteamento. Projeto particular que contempla apenas desmembramento. Peculiaridades do caso concreto. Sistema viário existente que atende suficientemente as necessidades da localidade. Loteamento prescindível, sob pena de inviabilização do parcelamento do solo. Aplicação dos primados da proporcionalidade e da razoabilidade. Parecer ministerial equivocado. Pretensão repelida. Decisão mantida. Recurso desprovido.

Ementa

APELAÇÃO CÍVEL. SUSCITAÇÃO DE DÚVIDA. PARCELAMENTO DO SOLO. IMPUGNAÇÃO MINISTERIAL NO SENTIDO DA NECESSIDADE DE LOTEAMENTO. PROJETO PARTICULAR QUE CONTEMPLA APENAS DESMEMBRAMENTO. PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO. SISTEMA VIÁRIO EXISTENTE QUE ATENDE SUFICIENTEMENTE AS NECESSIDADES DA LOCALIDADE. LOTEAMENTO PRESCINDÍVEL, SOB PENA DE INVIABILIZAÇÃO DO PARCELAMENTO DO SOLO. APLICAÇÃO DOS PRIMADOS DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE. PARECER MINISTERIAL EQUIVOCADO. PRETENSÃO REPELIDA. DECISÃO MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. À vista dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, verificada a impossibilidade fática em se implementar um loteamento com todas as condições e acréscimos estruturais exigidos pela legislação, a manutenção da sentença que assegurou o aproveitamento racional da propriedade urbana é medida de justiça que vem ao encontro da função social da propriedade e resguarda o direito social à moradia. Demais disso, não se verifica no caso em apreço, o intuito do proprietário de driblar a necessidade de dedicação de áreas para equipamentos urbanos, contando, inclusive com a anuência do ente municipal.

Íntegra

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SANTA CATARINA

APELAÇÃO CÍVEL Nº 2011.057136-9, de Presidente Getúlio

Relator: Des. Carlos Adilson Silva

Órgão Julgador: Terceira Câmara de Direito Público

Data de Julgamento: 03/04/2012

Data da Publicação: 13/04/2012

Juiz Prolator: Orlando Luiz Zanon Júnior

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. SUSCITAÇÃO DE DÚVIDA. PARCELAMENTO DO SOLO. IMPUGNAÇÃO MINISTERIAL NO SENTIDO DA NECESSIDADE DE LOTEAMENTO. PROJETO PARTICULAR QUE CONTEMPLA APENAS DESMEMBRAMENTO. PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO. SISTEMA VIÁRIO EXISTENTE QUE ATENDE SUFICIENTEMENTE AS NECESSIDADES DA LOCALIDADE. LOTEAMENTO PRESCINDÍVEL, SOB PENA DE INVIABILIZAÇÃO DO PARCELAMENTO DO SOLO. APLICAÇÃO DOS PRIMADOS DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE. PARECER MINISTERIAL EQUIVOCADO. PRETENSÃO REPELIDA. DECISÃO MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.

À vista dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, verificada a impossibilidade fática em se implementar um loteamento com todas as condições e acréscimos estruturais exigidos pela legislação, a manutenção da sentença que assegurou o aproveitamento racional da propriedade urbana é medida de justiça que vem ao encontro da função social da propriedade e resguarda o direito social à moradia.

Demais disso, não se verifica no caso em apreço, o intuito do proprietário de driblar a necessidade de dedicação de áreas para equipamentos urbanos, contando, inclusive com a anuência do ente municipal.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n. 2011.057136-9, da comarca de Presidente Getúlio (Vara Única), em que é apelante Ministério Público do Estado de Santa Catarina, e apelado Alexandre da Rocha Souza:

A Terceira Câmara de Direito Público decidiu, à unanimidade, negar provimento ao recurso.

Custas legais.

Participaram do julgamento, realizado nesta data, os Exmos. Srs. Des. Luiz Cézar Medeiros –

Presidente, com voto e Des. Pedro Manoel Abreu.

Florianópolis, 03 de abril de 2012.

Carlos Adilson Silva, Relator

RELATÓRIO

Na comarca de Presidente Getúlio, o registrador substituto do Cartório de Registro de Imóveis, atendendo parecer do Ministério Público, apresentou suscitação de dúvida sobre a viabilidade ou não do desmembramento de imóvel urbano em lotes acessíveis por uma servidão.

O Ministério Público se opôs à postulação, sob o fundamento de que é inviável o mero desmembramento, haja vista que o parcelamento com abertura de vias de acesso deve ser feita sempre por loteamento (fls. 71-72).

Sentenciando, o togado singular resolveu o mérito para autorizar administrativamente o desmembramento proposto nos autos, com a instituição de servidão (fls. 77-81).

Inconformada, a representante do Ministério Público interpôs recurso de apelação, reiterando o argumento que o caso posto em dúvida é de loteamento e não de parcelamento, motivo pelo qual deve ser negado o registro solicitado (fls. 83-90).

Contrarrazões juntadas às fls. 92.

Após, os autos ascenderam a esta Corte de Justiça, sendo posteriormente distribuídos a este Relator, designado para atuar neste Órgão Fracionário.

Lavrou parecer pela douta Procuradoria-Geral de Justiça o Exmo. Dr. Narcísio Geraldino Rodrigues no sentido de provimento do recurso (fls. 103-107).

É o relatório.

VOTO

Satisfeitos os pressupostos de admissibilidade recursais, conheço do recurso.

Na espécie, verifica-se que o imóvel objeto da controvérsia é o terreno de matrícula 5.689 do Registro de Imóveis da Comarca de Presidente Getúlio, com a área de 4.041,00 m², situado no Município de Dona Emma (SC), consoante infere-se da certidão de fls. 10, sendo o objetivo do proprietário repartir o referido imóvel em 6 lotes, com metragens de 307,70 m² (lote 1), 605,30 m² (lote 2), 483,40 m² (lote 3), 456,65 m² (lote 4), 429,90 m² (lote 5) e 634,80 m² (útil do lote 6), conforme mapeamento de fls. 25-26.

O recurso não merece provimento.

Vale lembrar, neste ponto, o ensinamento sempre lembrado de Hely Lopes Meirelles, a respeito da inegável e sempre preeminente necessidade da adoção de “medidas estatais destinas a organizar os espaços habitáveis, de modo a propiciar melhores condições de vida ao homem na comunidade.” (Direito Municipal Brasileiro, 3ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 33).

No entanto, da criteriosa análise dos autos, constata-se que a única forma efetiva de dividir o imóvel em lotes é da maneira proposta pelo proprietário, porquanto a metragem de fundos é muito superior à linha de frente do imóvel para a rua pública, conforme mapa total de fl. 27.

Anote-se que as formalidades registrais foram preenchidas (documentação acostada aos autos), bem como as autoridades municipais não se opõem à repartição do terreno, pois observadas as exigências do Plano Diretor local (Lei Municipal 91/2008), consoante fls. 21-24 (autorização da municipalidade) e nas fls. 63-65 e 69 (legislação local).

No entanto, persiste a dúvida quanto à via de acesso aos referidos lotes, considerando o ponto de vista do proprietário, que pretende abrir uma servidão com largura de 7,50 metros (fls. 27 e 68), em oposição à tese do Ministério Público, salientando ser necessária a abertura de via pública de acesso, por entender cuidar-se de loteamento, ensejando a necessidade de uma rua com largura de 13,50 metros (fls. 62 e 73-74).

De acordo com Rui Geraldo Camargo Viana, “ao lado do loteamento, caracterizado pelo desenvolvimento ou ampliação de bairros, aumentando o espaço urbano, aparece o conceito de desmembramento. Configura desmembramento o mesmo fenômeno de repartição de terra, desde que operado dentro do sistema urbanístico existente, influenciando, apenas, na densidade de ocupação dos espaços já urbanizados, não afetando, principalmente, o perfil das vias e logradouros preexistentes.” (in “O Parcelamento do solo urbano”. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1985, p. 51).

A sustentação ministerial está lastreada em interpretação do art. 2º, §§ 1º e 2º, da Lei 6.766/1979 (Parcelamento do Solo Urbano), segundo o qual:

Art. 2º. O parcelamento do solo urbano poderá ser feito mediante loteamento ou desmembramento, observadas as disposições desta Lei e as das legislações estaduais e municipais pertinentes.

§ 1º – Considera-se loteamento a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes.

§ 2º – Considera-se desmembramento a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com aproveitamento do sistema viário existente, desde que não implique na abertura de novas vias e logradouros públicos, nem no prolongamento, modificação ou ampliação dos já existentes”.

Da leitura desses parágrafos, infere-se que haverá o desmembramento no caso do aproveitamento do sistema viário existente, sem a abertura de novas vias e logradouros públicos, ou mesmo a modificação daqueles já existentes, ao contrário do loteamento, que pressupõe dita abertura ou modificação.

Assim, segundo a Promotoria de Justiça, a intenção do proprietário é “burlar as exigências para loteamento” (fls. 76), na medida em que a “servidão” seria uma “via de acesso” disfarçada, razão pela qual a conduta correta é efetuar-se um loteamento e não um desmembramento.

Portanto, para o órgão ministerial os lotes deveriam necessariamente serem servidos por uma rua sem saída.

Apesar de sedutores os argumentos ventilados, analisando detidamente os autos e à luz da pequena área do imóvel, conclui-se que o mesmo é muito estreito para fins de loteamento.

Como bem ressaltado pelo magistrado singular “acaso considerada a justificativa legal do Ministério Público para impedir o desmembramento, a única solução plausível seria a instituição do condomínio vertical entre os atuais titulares dos lotes, como única maneira de viabilizar a função social daquela propriedade.” (fls. 78).

Nesse cenário, imperioso laborar-se em uma harmonização dos preceitos legais antes mencionados (art. 2º, § 1º e 2º, da Lei do Parcelamento de Solo Urbano), considerando-se a realidade fática instalada e as diretrizes principiológicas da boa-fé objetiva (art. 113 do CC/2002) e da função social da propriedade (art. 5º, XXIII, da CRFB).

De acordo com a apreciação conjugada dos textos normativos acima descritos, articulados com o princípio da função social da propriedade, e considerando o interesse da municipalidade no bom aproveitamento do imóvel em questão (delineado nos autos, especialmente as fls. 62), forçoso concluir pela admissão do desmembramento na hipótese vertente.

Não se verifica a tentativa do proprietário em supostamente mascarar um loteamento com a criação de um desmembramento com servidão, à vista da pequena área, de modo que a única maneira de aproveitá-lo racional e razoavelmente é promover seu desmembramento, com a instituição de uma servidão, até porque inexiste espaço suficiente no imóvel para aparelhos públicos típicos de loteamento, como ruas amplas e bem planejadas.

Diante disso, não há malferimento aos preceitos da Lei de Parcelamento de Solo Urbano, pois o caso versa sim sobre um desmembramento, sem abertura de vias, mas com a instituição de uma servidão, que não é uma via pública propriamente dita, haja vista que serve somente aos lotes daquele imóvel desmembrando, inclusive por não ter saída.

A premissa de que efetivamente se trata de uma servidão (e não de uma via pública somente cabível em sede de loteamento) está bem fundada no fato de que se trata de um acesso sem saída, ou seja, que não será integrado na malha viária municipal, e o passeio de acesso “serve” somente aos 06 (seis) lotes ora em questão e, portanto, não é “via de acesso público” para outros munícipes.

Assim, não há inobservância ao art. 2º, § 1º e 2º, da Lei 6.766/1979, mas sim uma compatibilização do conceito legal de desmembramento com o primado da razoabilidade, no sentido de permitir sua conjugação com o instituto legal da servidão, sem ofensa à leitura literal do artigo de lei, tudo com vistas à articulação com o princípio da função social da propriedade, ou seja, confere-se outra interpretação ao regramento jurídico, distinta daquela oferecida pelo órgão ministerial.

Ainda nesse passo, registre-se que, mesmo denegado o desmembramento, o imóvel não poderia ser integralmente aproveitado (dividido em lotes para edificações de 06 [seis] moradias), pois a ampliação da via de acesso de 7,50 metros para 13,50 metros consumiria enorme área útil do referido bem, resultando em inegável déficit de razoabilidade no uso do solo urbano.

Demais disso, absolutamente desproporcional seguir as regras de loteamento, estabelecidas para racionalizar a utilização de grandes glebas urbanas, para que se desmembre apenas 06 (seis) lotes, em imóvel estreito de pouco mais de 4.000 m².

No particular, incide o elemento da proporcionalidade em sentido estrito no sentido da exigência de uma medida frente as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim.

Em outras palavras, não se trata aqui de afastar o interesse público em contar com vias amplas e seguras, mas simplesmente de impedir a atividade empresarial do proprietário do terreno.

Razoável, portanto, a conjugação dos permissivos legais de desmembramento com os de instituição de servidão, estabelecimentos normativos elaborados justamente para situações como a que ora se apresenta pois é absolutamente desnecessária uma via de acesso, sem saída, de 13,50 metros de largura apenas para servir 06 (seis) lotes de área residencial, que podem bem ser assistidos por uma servidão de 7,5 metros de largura.

Além de todo o exposto, não se vislumbra má-fé do proprietário em contornar a exigência legal de loteamento, mas sim uma proposta de utilização do solo urbano que somente é viável mediante desmembramento com instituição de servidão, mesmo porque tal destinação compulsória é faticamente inviável diante das dimensões e conformações do terreno em tela, consoante se verifica dos documentos acostados aos autos, em especial os de fls. 25-27 e 58.

Provada a intenção do proprietário em viabilizar financeira e materialmente tal imóvel, insuscetível de loteamento, deve ser aproveitado da única forma que é possível diante das condições jurídicas e fáticas existentes, justamente sobre a única modalidade praticável, qual seja, o desmembramento com instituição de servidão.

Como bem asseverado na decisão recorrida, “não desconheço que foi vetada a modificação legal ao desmembramento com sistema viário. Contudo, a justificativa apresentada pelo Presidente da República era evitar que fosse utilizado tal instituto de má-fé, somente com o intuito de driblar a necessidade de dedicação de áreas para aparelhos urbanos (cf. Nicolau Balbino Filho. Registro de Imóveis. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 364).” [fls. 80].

Nesse sentido caminha a jurisprudência deste Tribunal:

“APELAÇÃO CÍVEL. SUSCITAÇÃO DE DÚVIDA. DESMEMBRAMENTO DE GLEBA DE TERRA. APROVEITAMENTO DO SISTEMA VIÁRIO EXISTENTE. DESNECESSIDADE DE SE CRIAR SISTEMA DE INFRAESTRUTURA BÁSICA. PARECER MINISTERIAL EQUIVOCADO. PRETENSÃO REPELIDA. DECISUM MANTIDO. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO.” (AC n. 2011.046378-7, de Joaçaba, Rel. Des. Saul Steil, j. em 18/10/2011).

E do STJ: “Segundo o disposto no Decreto-Lei nº 271/67, no loteamento exige-se a previsão de infraestrutura, com criação de vias públicas e outros espaços e equipamentos urbanos, que passam a integrar o domínio público do Município desde a data da inscrição do loteamento (art. 4º). No desmembramento, parcelamento de área de menor complexidade, tal exigência é dispensada, porque são suficientes o sistema viário e os logradouros públicos existentes. Nada impede, contudo, que, como no caso em exame, o proprietário desmembrador opte por criar via de acesso, cedendo a faixa respectiva ao Município.” (REsp 323821/RJ Ministra Maria Isabel

Gallotti j. em 06/12/2011).

Sublinhe-se, por fim, que a presente decisão atende às diretrizes de política urbana previstas no Estatuto da Cidade, mormente quanto ao art. 2º, IX e XV, da Lei 10.257, no sentido do “aumento da oferta dos lotes e unidades habitacionais”, e principalmente na “justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização”.

Com efeito, acaso seguida a promoção ministerial, certamente se estará sub-utilizando a área do imóvel, ante a diminuição do número de lotes edificáveis, sem que se vislumbre qualquer benefício ambiental ou de racionalidade urbana, em flagrante ofensa aos preceitos da função social da propriedade (CRFB) e do aproveitamento urbano para moradia (Estatuto da Cidade).

Ante o exposto, nego provimento ao recurso com base no aproveitamento racional da propriedade urbana (faceta da função social) e nos primados da proporcionalidade e razoabilidade.

Por fim, junte-se a petição protocolizada em 23/11/2011 sob o nº 029358.

Este é o voto.

Fonte: IRIB