Personalidade Jurídica do Condomínio Edilício
Marcelo Guimarães Rodrigues
Direito anterior: Decreto 5.481, de 25.6.28
Direito atual: Lei 4.591, de 1964 – clique aqui (com a redação da lei 4.864, de 1965 – clique aqui), Código Civil de 2002 (art. 1.331 a 1.358), LRP (art. 167, I, 17 e 23, 172 e 178, III) e CPC (art. 12, IX)
1.Proposta do tema
A partir da edição da CF/88 (clique aqui), um novo marco foi estabelecido no âmbito das relações civis, alterando-se profundamente a concepção fundamentalmente patrimonialista do Código Civil de 1916 (clique aqui) que, coerente com as codificações do século XIX, propagava o individualismo jurídico baseado na sistematização alemã do estatuto jurídico dos bens.
O que vemos agora, a partir de um claro envolvimento da Lei Maior com diversos institutos do direito civil, é a sua crescente constitucionalização, movimento esse cujo mérito é impregnar a disciplina de valores fundamentais pautados na pessoa humana, impondo-nos a oportunidade de reexaminar estatutos tradicionais do direito civil sob uma nova ótica de eficácia social, baseada na despatrimonialização e repersonificadora. A personalidade jurídica e sua titularidade deixam de ser um abrigo do poder individual e são alçadas a um patamar superior do ordenamento, capaz de modelar a “autonomia privada” e de “submeter toda a atividade econômica a novos critérios de legitimidade.”2
Neste descortino, importantes institutos do direito civil como a família, as relações contratuais, a posse e a propriedade, por exemplo, se sujeitam a uma nova leitura, impossível de ser obtida a partir dos sistemas tradicionais calcados na conceituação clássica do século XIX, no que se insere igualmente a personalidade jurídica dos condomínios.
Com efeito, temos hoje, claramente, novos conceitos de propriedade, a partir do que, mais correto será mencionar propriedades (assim mesmo, no plural), dentre as quais avulta a propriedade do condomínio em edifícios; todas, indistintamente, sem prejuízo de suas diferentes peculiaridades, partindo de um conteúdo similar e essencial, justificadas pela interação entre as necessidades, nem sempre simétricas, dos indivíduos e da sociedade, em que cada classe de bens determina uma forma diferenciada de apropriação.
A evolução da sociedade (= interesse social) e o legítimo interesse econômico, próprio de uma economia de mercado (= função econômica do direito de propriedade), ditam a conveniência e oportunidade que justificam o surgimento de novas configurações jurídicas no tocante a apropriação de bens móveis e imóveis.
Parece-me claro que o Direito, como ciência jurídica e social, deve se adaptar às novas necessidades transformadoras dos fenômenos sociais e econômicos de forma geral e, no particular, no que diz respeito à definição da personalidade jurídica do condomínio especial, coerente com o momento de profundas mudanças no direito civil brasileiro.
2.Marco legal do condomínio em edifícios
O Código Civil de 2002 (clique aqui) disciplina essa modalidade de condomínio em seus artigos 1.331 a 1.358, a meu aviso derrogando parcela substancial da Lei de 1964 denominada de Condomínios e Incorporações (4.591).
Via de regra, a constituição desse condomínio especial não é imposta, mas antes surge da vontade do(s) titular(es) do direito real de propriedade, por ato entre vivos ou testamento, ao submeter o empreendimento imobiliário ao regime especial ditado nos diplomas legais acima referidos. É instrumentalizada no memorial de instituição do condomínio que instruído com a documentação exigida em lei será obrigatoriamente registrado na matrícula do imóvel – Livro 2 (art. 167, I, n. 17 da LRP), do Serviço de Registro de Imóveis da respectiva circunscrição territorial, abrindo caminho para o surgimento das unidades autônomas propriamente ditas (apartamentos, salas, lojas, boxes, vagas de garagem, etc.), cada qual correspondendo a uma fração ideal do terreno no qual foi erguida a edificação, com matrículas novas e individuais.
Além disso, uma vez instituído e especificado o condomínio especial, esse será regido pela convenção respectiva, cuja existência decorre da necessidade de administração das partes de uso comum da edificação e que se equipara a um contrato social, disciplinando entre outras matérias, o pagamento das contribuições do condomínio, sua administração, a competência das assembléias, sanções, criação de órgãos decisórios e de fiscalização, além do regimento interno. O instrumento da convenção do condomínio é sujeito também a registro obrigatório, mas perante o Livro 3 – Registro Auxiliar (art. 178, III LRP) do Serviço de Registro de Imóveis da respectiva circunscrição territorial.
Assim, em dois atos e registros distintos, consumados perante o mesmo Serviço de Registro de Imóveis, nasce e se aperfeiçoa juridicamente a figura do condomínio edilício ou em planos horizontais, com legitimidade de representação da coletividade dos condôminos nas relações jurídicas impostas explícita ou implicitamente da regular administração de suas partes e interesses comuns, inclusive perante terceiros.
Anote-se que a partir do registro de sua instituição, fica o condomínio obrigado a se cadastrar na Receita Federal a fim de obter o CNPJ (cadastro nacional de pessoas jurídicas), habilitando-o a contratar empregados, preencher livros fiscais, cadastrar-se junto ao INSS, FGTS, faturar compras e firmar contratos em geral. É sujeito de direitos e obrigações como a generalidade das empresas, sendo obrigado inclusive a reter parcelas devidas ao INSS, PIS, Confins e CSLL (contribuição sobre o lucro líquido), etc.3
3. Perfil sui generis do condomínio edilício
A personificação jurídica do condomínio edilício, lacunosa na lei, é um tema pouquíssimo desenvolvido na doutrina, circunstâncias que sem dúvida dificultam, mas não impedem que o Judiciário, quando provocado e diante do caso concreto decida a respeito, como de fato tem ocorrido em frequência crescente.
O condomínio edilício tem sido considerado sob os mais diversos enfoques: ‘ente jurídico’, persona ficta (ou ‘moral’, ‘intelectual’, ‘coletiva’), denominação que, do ponto de vista do jusnaturalismo, conceitua comunidades ou corporações, ou ‘comunidade de interesses ativos e passivos’, que não obstante se distingue perfeitamente dos titulares de cada uma das unidades autônomas, não é enquadrado como uma pessoa jurídica em sentido estrito, de igual forma como se dá com outros entes formais tais como o espólio da herança jacente ou vacante, a massa falida, a sociedade irregular, etc.
Todavia, não se pode deixar de apontar algumas assimetrias na composição desse rol.
De início, revela observar o caráter transitório dos demais entes formais o que torna despiciendo conferir a tais situações jurídicas uma proteção mais abrangente. Já no condomínio edilício, ocorre justamente o contrário de sorte que sua instituição é, senão perpétua, ao menos perene, o que justifica sob vários aspectos, inclusive da segurança jurídica, a definição de sua personalidade.
Lado outro, revela o ato de sua instituição a conjugação de todos os requisitos exigidos para a válida constituição da pessoa jurídica:
a) a vontade humana criadora, com o direcionamento volitivo de várias pessoas em torno de uma finalidade comum e de um novo organismo;
b) o cumprimento das condições legais de sua formação;
c) liceidade de seus propósitos;
d) a forma prescrita ou não defesa em lei;
e) o obrigatório registro público na circunscrição imobiliária respectiva com eficácia constitutiva e oponível perante terceiros.
A despeito de todas essas circunstâncias, o art. 44 (I a V) do Código Civil permanece ignorando o condomínio edilício no rol de pessoas jurídicas de direito privado, basicamente pela teoria adotada na lei civil: “subsistência, em cada condômino, da propriedade sobre toda a coisa”.4
Com efeito, perdeu o Código Civil de 2002, “excelente oportunidade para reconhecer a personalidade jurídica desse condomínio como equiparada à da pessoa jurídica. De fato, com sua personalidade anômala, como definimos em nossa Teoria Geral (v. 1), o condomínio de apartamentos ou assemelhado, compra, vende, empresta, presta serviços, emprega, recolhe tributos, etc. Nada impede, por exemplo, que o condomínio seja proprietário de unidades autônomas, lojas no térreo ou garagens, que loca e aufere renda para a comunidade condominial”.5
A omissão da lei civil que há algumas décadas poderia ser taxada de inconveniente, atualmente já pode ser qualificada como algo grave, notadamente diante dos encargos e interesses sociais e econômicos cada vez mais complexos que gravitam em torno desses condomínios, invariavelmente maiores e que vem dispondo de leque sempre mais variado de serviços e relações jurídicas, sobretudo nos grandes centros urbanos, locais em que a especulação imobiliária e cotidianas situações de violência vão definindo uma nova forma de viver e de se relacionar.
É conhecido o caso concreto, que com frequência se repete Brasil afora, no qual o condomínio perdeu a opção de compra de um terreno contíguo que solução daria ao crônico problema de falta de vagas para estacionamento de veículos pela impossibilidade de se reunirem numa escritura 200 pessoas (= número de condôminos) para a compra em seu nome, pois o Tabelião recusou-se a lavrar a pública forma na qual, para tal aquisição, o síndico seria o representante do condomínio6. Sérias dificuldades terá ainda o condomínio que decidir comprar um imóvel defronte ao prédio, com o objetivo de valorizar os apartamentos, impedindo a construção de outro edifício7. Além disso, cumpre destacar a dificuldade adicional imposta ao condomínio que a despeito da legitimidade processual para deflagrar a ação de cobrança ou execução judicial de quotas condominiais em atraso, estaria em princípio alijado de adjudicar a unidade, a despeito de o art. 647 do CPC eleger essa modalidade de alienação como preferencial. Ou seja, um verdadeiro paradoxo, pois torna inócua e sem sentido sua capacidade postulatória, na medida em que lhe frustra obter qualquer resultado prático, a satisfação do crédito. Impedido ainda estará de adquirir unidade autônoma e revertê-la ao uso comum de interesse dos condôminos, conforme deliberado em assembléia ou ainda de requerer a constituição de usufruto em seu favor.8
A meu ver, o condomínio edilício não se equipara às associações e sociedades civis, tampouco às demais hipóteses do art. 44 do Código Civil de 2002. Instituto do direito real imobiliário que é, tem escopo único, diferenciado.
Sua condição é sui generis, especial. E a despeito de tudo o que foi analisado a justificar o reconhecimento de sua personalidade jurídica, a verdade é que somente ainda não o tem pela omissão do legislador, pela inexistência de declaração formal e expressa da lei, pura e simplesmente, de sorte que, a rigor, nada no sistema jurídico brasileiro impede que o legislador o faça.
4.Evolução jurisprudencial – 1ª parte (personalidade judiciária)
Do ponto de vista processual (= personalidade judiciária), o condomínio edilício é representado em juízo e fora dele pelo síndico (pessoa natural), nos termos do art. 12, IX do CPC.
Nem sempre foi assim.
Partindo de uma visão formalista, nos primeiros tempos de vigência da lei 4.591, cogitou-se em não se reconhecer a personalidade judiciária do condomínio, sob o argumento exatamente de não se tratar de uma pessoa jurídica, daí porque nas ações em que figurava como parte deveria se fazer representar por todos os condôminos individualmente, em litisconsórcio que além de necessário, era unitário. Pouco a pouco os Tribunais evoluíram no entendimento que o novo diploma legal ao criar a figura de um condomínio especial originou uma realidade jurídica denominada “pessoa formal”, legitimada para em seu próprio nome e representada pelo síndico atuar ativa ou passivamente em juízo no resguardo dos direitos e interesses comuns, incluindo tudo o que fosse relacionado com a manutenção do edifício e com a disciplina de sua utilização.9 E assim aconteceu exatamente porque se o Direito tem uma finalidade e o direito processual é o meio para o seu resguardo, o instrumento deve ser manejado de forma a cumprir, com a maior eficácia possível a finalidade para a qual foi desenvolvido: resolver os conflitos de interesse pela aplicação do Direito.
Contudo, em que pese tais atributos, ainda não possui o condomínio edilício personalidade jurídica plena, pois perante a lei civil não é considerado pessoa jurídica e o registro de sua instituição junto ao Serviço Imobiliário não é, por si só, considerado apto a promover equiparação a pessoa jurídica, em que pese de fato essa realidade já exista a partir da solene manifestação coletiva de interesses comuns equalizados por meio de uma assembléia.
5. Evolução jurisprudencial – 2ª parte (personalidade jurídica)
Dado que a personalidade judiciária do condomínio edilício foi reconhecida pelo legislador a partir da construção jurisprudencial sobre a matéria, a evolução do entendimento no tocante à sua personalidade jurídica, a partir do que tem sido igualmente decidido pelo Judiciário em casos concretos sinaliza a pavimentação de similar caminho que, mais cedo ou mais tarde, ensejará esse reconhecimento na lei civil.
Em verdade, inclusive corrigindo o que habitualmente tem sido propagado, coube ao Tribunal de Justiça da Guanabara o pioneirismo em reconhecer a personalidade jurídica do condomínio em acórdãos relatados pelos Des. Olavo Tostes e Des. Salvador Pinto Filho nos idos de 1971 (apelações cíveis 68.800 e 79.382 – DJGB 21/1/71, p. 37 e RT 453/217), reportando-se esse último à lição de SERPA LOPES, para quem o condomínio edilício é “um fenômeno societário dotado de personalidade jurídica”10, ao passo que o primeiro chamava a atenção para o que, com seu elevado sendo da realidade, considerava “a inconsistência do ponto de vista segundo o qual é indispensável o reconhecimento estatal da existência das pessoas jurídicas”, na medida em que “os partidários da escola realística viam nesse reconhecimento um ato meramente declarativo…”11.
Logo após, o 3º Grupo de Câmaras Cíveis do mesmo TJGB reafirmou o entendimento de que “o condomínio não só pode adjudicar os direitos do condômino inadimplente como também transmiti-los a terceiros, seja durante, seja após a construção (RT 467/206)”. O Relator (Des. Santiago Costa) fundamentou em seu voto – e remanesce atualíssimo – “lamentar que o legislador ainda se omitisse em declarar expressamente ser o condomínio pessoa jurídica distinta da pessoa de cada um de seus membros, tanto que tem órgãos próprios (assembléia), contrata serviços, inclusive de utilidade pública, faz e desfaz contratos de trabalho, mantém e movimenta contas bancárias etc.: Para a prática de todos esses e outros atos suscetíveis de criar direitos e obrigações, tem-se-lhe reconhecido, pacificamente, capacidade jurídica. Que lhe falta então para se-lhe atribuir personalidade jurídica? Simplesmente a declaração formal e expressa da lei, que, entretanto a reconhece implicitamente, a admitir que o condomínio seja capaz para o exercício de atos que, normalmente, só as pessoas físicas ou jurídicas podem praticar e aos quais a ordem jurídica brasileira confere legitimidade e eficácia incontestáveis (RT 467/207).”12
Muitos anos após várias outras decisões tem admitido a personalidade jurídica do condomínio para adjudicar o imóvel em hasta pública em execução ou cumprimento de sentença ou mesmo para aquisição pura e simples – e obter os registros respectivos -, mediante determinadas premissas, entre as quais prevalece a deliberação unânime dos condôminos em assembléia.
Neste sentido, também decidi em sentença proferida em processo de dúvida deflagrada pelo 5º Serviço de Registro de Imóveis de Belo Horizonte, na condição de titular, à época, da Vara de Registros Públicos no Forum Lafayette da Capital Mineira13 (como de fato ocorrera igualmente em outros Estados).
Ainda nessa linha, os enunciados 90 e 246 das Jornadas de Direito Civil da Justiça Comum Federal, reconhecendo a personalidade jurídica ao condomínio edilício.
Todas são situações que diferem daquilo que consta no §3º do art. 63 da lei 4.591 que permite que o empreendimento imobiliário se dê pela união de esforços para a construção de um prédio com a atribuição de uma unidade autônoma a cada condômino correspondente à fração ideal adquirida e denominado de grupo fechado, estendendo-se ainda tal permissão à aquisição (= subrogação de direitos) da fração ideal de condômino inadimplente, independentemente do prévio registro da incorporação.
A propósito desse dispositivo legal, e pouco tempo após a entrada em vigor da Lei de 1964, dúvidas foram suscitadas pelos registradores de imóveis, questionando a possibilidade jurídica de o condomínio registrar as cartas de adjudicação em seu nome. Curioso é que até um parecer do autor da lei foi utilizado, no qual, “a despeito de não reconhecer ao condomínio personalidade plena, sustentou que essa condição existia para o fim especial de obter a adjudicação em seu nome e de vê-la registrada…”14
6.Direito comparado
Em rápido giro pelo direito comparado, mais evidenciado fica o descompasso da legislação brasileira, de sorte que em França, desde 1965, é reconhecida a personalidade jurídica do que lá se denomina “sindicato de proprietários” (art. 14 da lei 60.577, de 10.7.65).
Tomando exemplos mais próximos, na Colômbia desde a lei 675, de 2001, o condomínio é dotado de personalidade jurídica expressa, após a devida inscrição no órgão municipal próprio. E o mesmo se dá na Argentina, com a lei 13.512, que apenas tratou de “confirmar o que já vinha sendo decidido e aplicado pelos tribunais de todo o país com aplausos de todos os doutrinadores”.15
7.Observações quanto ao conteúdo de projetos legislativos a respeito
Objetivando preencher a lacuna legal, recentemente tramitou16 o PL 4.816/09, que tinha por objetivo acrescentar dispositivos à Lei dos Registros Públicos e ao Código Civil de 2002, visando conferir “aos condomínios edilícios a oportunidade de se constituírem pessoas jurídicas”.
De fato, a iniciativa é muito bem-vinda e deve ser reconhecido o mérito do trabalho desenvolvido a fim de adequar o texto do projeto a um consenso mínimo entre os diversos e por vezes antagônicos interesses envolvidos, o que nem sempre é possível no embate político. Por sua preocupação em regulamentar tema de elevada importância a considerável segmento da sociedade, creio que a matéria reúne legítimas condições de ser reavaliada e brevemente prosperar no processo legislativo respectivo.
Todavia, é importante definir com segurança a espinha dorsal do que trata a natureza jurídica do instituto do condomínio edilício, atento à suas peculiaridades que, conforme acima anotado, não encontram similitude com nenhuma das pessoas jurídicas de direito privado indicadas no referido art. 44 do Código Civil de 2002.
Neste particular, não me parece coerente que a proposição de lei a respeito limite-se a oferecer uma opção do condomínio edilício em se transformar em pessoa jurídica. A essência jurídica das coisas em geral e desse instituto de direito real de propriedade imobiliária em particular, normalmente não transige com a faculdade de ser ou não ser. Ou é ou não é pessoa jurídica. E essa escolha parte pura e simplesmente e se esgota num juízo de valor do próprio legislador, que a definirá em momento anterior. É inconveniente que situações rigorosamente idênticas possam ter tratamento diferenciado no plano jurídico, sob pena de gerar incerteza e insegurança. É preciso convir que esse ente coletivo é pessoa jurídica sui generis e a partir de sua instituição deve assumir tal condição de forma vinculada e obrigatória o que, como desdobramento, dispensa a anuência dos condôminos.
E a instituição do condomínio edilício se dá, por meio de registro no serviço de registro de imóveis da respectiva circunscrição territorial, assim como sua convenção, inclusive para operar efeitos perante terceiros. Por isso, me parece desnecessário e, sobretudo equivocado pretender exigir que seus “atos constitutivos” sejam inscritos no registro civil de pessoas jurídicas como se equiparado fosse a sociedade ou associação civil, o que não é.
Em verdade, os registros de sua instituição e convenção no serviço imobiliário já produzem eficácia constitutiva (e não apenas declaratória) no mundo jurídico traduzindo-se em bis in idem a exigência de outro registro, agora no serviço do registro civil de pessoas jurídicas, como se juridicamente possível fosse ter outras destinações ou objetivos que não regulamentar o uso, fruição e destinação compartilhada da propriedade imóvel em planos horizontais.
Além disso, a disciplina jurídica já existente, p. ex., o art. 1.331, §2º do Código Civil de 2002, da mesma forma o art. 2º da lei 4.591, de 1964, não deixa margem para outras condições que em tese podem surgir no âmbito de uma associação ou sociedade civil, por absoluta incompatibilidade. O condomínio edilício é instituído de forma perene e só deixará de existir, pela desapropriação, perda ou destruição de seu objeto ou por deliberação de quem detenha a totalidade de suas frações ideais. Assim, não se cogita de declaração de fins e tempo de duração, condições de extinção, requisitos para admissão, demissão e exclusão de seus membros e outras peculiaridades incompatíveis com um instituto de direito real imobiliário, conforme previsto no referido Projeto.
Lado outro, há lacuna no tocante ao quorum para a deliberação sobre aquisição e venda de bens imóveis, lembrando que nos art. 1.342 e 1.343 do Código Civil de 2002 há previsão de elevado quorum qualificado (2/3) para situações análogas, o que pode comprometer a eficácia do novo perfil que se deseja para o condomínio edilício.
8.Conclusões
A postura de que o condomínio edilício se explica por si mesmo, ainda dominante na doutrina, mostra-se em flagrante descompasso com as necessidades sociais e econômicas contemporâneas e explica um pouco a crise atual do direito de propriedade, fato determinado basicamente por seu visível estreitamento.
O sistema jurídico brasileiro não é, absolutamente, incompatível com a personificação jurídica do condomínio edilício que, no entanto, deve ser compulsória, jamais facultativa, sob pena de semear insegurança e incerteza nas relações jurídicas.
O princípio da especialidade do registro imobiliário, um dos vetores em que se apóia a confiança da população no sistema registral, é instrumento jurídico apto a permitir que a aquisição de áreas privativas de imóvel em regime de co-propriedade a fim de serem colocadas ao uso comum, se realize com eficácia e segurança jurídica.
A evolução jurisprudencial a respeito do tema, desde a edição da lei 4.591, de 1964 demonstra a imperiosa necessidade de se dotar o condomínio edilício de personalidade jurídica, a fim de eliminar inconsistências do sistema e aplacar a incoerência daqueles que só admitem reconhecê-la em último caso.
O Registro de Imóveis, por se tratar o condomínio edilício de fenômeno intrínseco do direito real de propriedade imobiliária, e que, dado sua essência especial, não se assemelha a nenhuma outra pessoa jurídica de direito privado, deve ter a atribuição exclusiva e privativa de constituir sua personalidade jurídica.
9. Bibliografia
TEPEDINO, Gustavo. Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002. A Parte Geral do Novo Código Civil (Estudos na Perspectiva Civil-Constitucional). Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 25.
MONTEIRO. Washington de Barros. Direito Civil. 41ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007. Vol. 1, p. 131.
VENOSA. Silvio de Salvo. Direito Civil: Direitos Reais. São Paulo: Atlas, 2003, 3ª ed., p.289-290.
MALUF. Carlos Alberto Dabus e MARQUES.Márcio Antero Motta Ramos. O Condomínio Edilício no novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 12-13.
CÂMARA. Hamilton Quirino. Condomínio Edilício – Manual Prático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 22-23.
PAIVA. João Pedro Lamana. Possibilidade de Registro da Carta de Adjudicação pelo Condomínio Edilício: Lei 4.591/64 e Lei 10.406/02. Trabalho apresentado no XXXV Congresso Nacional do IRIB, 2008.
FRANCO. J. Nascimento. Condomínio. 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 255.
ARAGÃO. Severiano Ignacio de (cit.). Regime Jurídico do Condomínio Fechado. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p.32.
RODRIGUES. Marcelo Guimarães. Vara de Registros Públicos da Comarca de Belo Horizonte. Proc. n. 024.05.801.569-4.
RACCIATTI. Hernán. Propriedad horizontal por pisos o por departamentos. 2ª ed. Buenos Aires: p. 174.
__________________
1 Palestra proferida no I Ciclo de Estudos do Departamento de Registros de Imóveis da SERJUS-ANOREG MG sobre Condomínios e Incorporações Imobiliárias. Belo Horizonte, 12.12.09.
2 TEPEDINO, Gustavo. Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002. A Parte Geral do Novo Código Civil (Estudos na Perspectiva Civil-Constitucional). Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 25.
3 Cf. Dec. 3.000, de 1999 e Lei 10.833, de 2003.
4 MONTEIRO. Washington de Barros. Direito Civil. Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva, ano. Vol, p.
5 VENOSA. Silvio de Salvo . Direito Civil: Direitos Reais. São Paulo: Atlas, 2003, 3ª ed., p.289-290.
6 MALUF. Carlos Alberto Dabus e MARQUES. Márcio Antero Motta Ramos. O Condomínio Edilício no novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 12-13.
7 CÂMARA. Hamilton Quirino. Condomínio Edilício – Manual Prático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 22-23.
8 PAIVA. João Pedro Lamana. Possibilidade de Registro da Carta de Adjudicação pelo Condomínio Edilício: Lei 4.591/64 e Lei 10.406/02. Trabalho apresentado no XXXV Congresso Nacional do IRIB, 2008.
9 FRANCO. J. Nascimento. Condomínio. 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 255.
10 ARAGÃO. Severiano Ignacio de (cit.). Regime Jurídico do Condomínio Fechado. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p.32.
11 Idem.
12 FRANCO. J. Nascimento (cit.). Ob. cit., p. 263.
13 RODRIGUES. Marcelo Guimarães. Vara de Registros Públicos da Comarca de Belo Horizonte. Proc. n. 024.05.801.569-4.
Sentença
Dúvida deflagrada perante este Juízo especializado pela Oficiala Substituta do 1º Serviço de Registro de Imóveis de Belo Horizonte, a requerimento de Condomínio do Edifício Algídia Ribas, a propósito de escritura pública de compra e venda tendo por objeto o imóvel matriculado sob o n. 46.288.
Aponta a Oficiala Registradora que o imóvel foi adquirido pelo condomínio, e que de acordo com a orientação doutrinária e jurisprudencial, condomínio não tem personalidade jurídica para adquirir bens, salvo a hipótese do art. 63, §3º, da Lei n. 4.591, de 1964, o que não é o caso apresentado. Irresignado com a recusa da Oficiala em registrar o título, requereu a suscitação de Dúvida. Todavia, apesar de devidamente notificado e transcorrido o prazo legal, não apresentou impugnação.
O Dr. Curador de Registros Públicos absteve-se de exarar parecer em face da ausência de impugnação.
É a síntese, no essencial. DECIDO.
Em melhor e detida análise do presente caso, estou a firmar entendimento de que o condomínio possui personalidade jurídica para adquirir imóvel, desde que preenchidos alguns requisitos legais.
É certo que a Lei n. 4.591, de 1964, em seu art. 63, §3º, atribui personalidade jurídica ao condomínio para adquirir a unidade autônoma, quando da construção do edifício, no caso do inadimplemento do condômino.
Entretanto, há uma lacuna na legislação concernente aos condomínios edilícios e especiais com relação a esta matéria.
Em artigo de autoria de J. Nascimento Franco, publicado em 1982, este defendia o reconhecimento desta personalidade jurídica ao condomínio. Ressalta o jurista que:
“Em suma, não se justifica mais a obstinação em se negar ao condomínio em edifício, cujo instrumento de instituição esteja registrado no Cartório de Registro de Imóveis, o direito de adquirir bens imóveis, notadamente quando a assembléia geral autorizar o síndico a celebrar os contratos e a assinar a respectiva escritura.”
“O instrumento de instituição e convenção, uma vez registrado, equipara o condomínio, quando mais não seja, às sociedades irregulares, que praticam centenas de atos no mundo dos negócios. Na realidade, o condomínio em edifício distingue-se perfeitamente da pessoa de cada um dos condôminos. Consequentemente, nada mais razoável do que considerá-lo com personalidade jurídica para as aquisições de que necessite e autorizadas por sua assembléia geral.” (Revista de Direito Imobiliário do IRIB).
Neste sentido, deve o Oficial Registrador se ater a alguns requisitos para que possa registrar o título em sua tábula, como a presença de ata da assembléia geral do condomínio com deliberação e aprovação da aquisição ou alienação do imóvel, pela unanimidade dos presentes à assembléia. Ademais, o condomínio deverá estar quite com todas as suas obrigações fiscais.
Há de se ressaltar que já existem decisões semelhantes em Tribunais Superiores, como se pode ver pelo recente acórdão do Conselho Superior da Magistratura de São Paulo, no qual se decidiu pela possibilidade de registro de adjudicação em favor do condomínio, em caso similar ao dos presentes autos:
“Registro de Imóveis – Dúvida julgada procedente – Registro de carta de adjudicação. – Condomínio Especial como adquirente – Ausência de personalidade jurídica – Viabilidade de aquisição, em tese, mediante aplicação analógica do artigo 63, §3º, da Lei n. 4.591, de 1964 – Necessidade de aprovação da aquisição, em assembléia geral dos condôminos – Recurso Provido.” (Ac. n 273-6/7, de 23.02.2005).
Pelo exposto, julgo improcedente a presente nota de Dúvida, recomendando a Oficiala Registradora a observância dos critérios aqui apontados para o registro do título, sem prejuízo das demais formalidades legais.
Isento de custas. Com o trânsito, cumpra-se o disposto no art. 203, II, da Lei n. 6.015, de 1973, seguindo-se à baixa e arquivo dos autos.
P. R. I.
Belo Horizonte, 18 de outubro de 2005.
(ass.) JUIZ MARCELO Guimarães RODRIGUES
14 Idem, ibidem.
15 RACCIATTI. Hernán. Propriedad horizontal por pisos o por departamentos. 2ª ed. Buenos Aires: p. 174.
16 Ao que consta arquivado na respectiva Casa Legislativa.
*Desembargador do TJ/MG
Fonte: Migalhas. Esta matéria foi colocada no ar originalmente em 12 de fevereiro de 2010.