TJ|SC: Direito de representação. Origem do instituto.
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – PAI DOS AUTORES VÍTIMA DE HOMICÍDIO PRATICADO PELO PAI DOS RÉUS – HERANÇA POR ESTES RECEBIDA DO AVÔ QUANDO JÁ FALECIDO O AUTOR DO ILÍCITO QUE NÃO DEIXOU BENS A INVENTARIAR – DIREITO DE REPRESENTAÇÃO – FUNDAMENTOS E EFEITOS DO INSTITUTO – RÉUS QUE HERDAM DIRETAMENTE DO AVÔ – PATRIMÔNIO QUE NÃO RESPONDE PELA REPARAÇÃO DOS DANOS – RECURSO PROVIDO. Quem herda por direito de representação não exerce direito do herdeiro pré-morto, mas direito próprio que a lei lhe confere diretamente. Não há duas sucessões (uma entre o autor da herança e seu descendente em 1º grau já falecido e outra entre este e seus descendentes), mas uma só (entre o autor da herança e seus descendentes em 2º grau na linha reta). Os bens do autor da herança não passam a integrar o patrimônio do pré-morto para, em seguida, serem transferidos aos herdeiros. Isso não ocorre nem mesmo ficticiamente, pois não é essa a finalidade do direito de representação. Pontes de Miranda sintetiza com lucidez: “O representante não exerce, rigorosamente, direitos do representado. Põe-se no lugar e no grau dele, porém, o direito que exerce é seu. Do representado há completa abstração” (apud LEITE, Eduardo de Oliveira. Direito civil aplicado, v. 6: direito das sucessões. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2004, p. 165). “O principal efeito da representação é atribuir o direito sucessório a pessoas que não sucederiam, por existirem herdeiros de grau mais próximo, mas que acabam substituindo um herdeiro pré-morto. Pelo fato de os representantes sucederem diretamente o de cujus, não estão obrigado pelas dívidas do representado, mas somente pelas daquele” (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, v. 7: direito das sucessões. 2. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 201).
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n. 2004.012118-0, da Comarca de Lages (2ª Vara Cível), em que são apelantes Dayanne Franciélle Chaves e Jean Volnei Chaves e apelados Dian Carlos Gusatti e Daiane Patrícia Gusatti:
ACORDAM, em Segunda Câmara de Direito Civil, por votação unânime, dar provimento ao recurso. Custas legais.
RELATÓRIO
Dian Carlos Gusatti e Daianne Patrícia Gusatti deflagraram “ação de indenização por dano moral” contra Dayanne Franciélle Chaves, Jean Volnei Chaves e Caroline Cordeiro Chaves, sucessores de Vidal Volnei Chaves.
Em petição inicial, disseram que: (I) seriam filhos de José Sidnei Gusatti, morto em 15 de novembro de 1995, vítima de homicídio praticado por Vidal Volnei Chaves; (II) a autoria e a materialidade do homicídio estariam demonstradas por meio de prova produzida em processo criminal em que o pai dos réus foi pronunciado para julgamento pelo júri popular; (III) a perda do pai causou-lhes dor e sofrimento, e os levou a procurar ajuda profissional em busca da superação do trauma.
Após outras considerações, pediram a condenação dos réus ao pagamento de indenização por danos morais a ser fixada em valor equivalente a 500 salários mínimos para cada um dos autores.
Foi deferido aos autores o benefício da justiça gratuita (fl. 36).
Pelos réus Jean Volnei Chaves e Dayanne Franciélle Chaves foi oferecida contestação, em que: (I) arguiram as preliminares de ilegitimidade passiva, ao argumento de que o pleito indenizatório deveria ter sido dirigido contra o espólio de Vidal Volnei Chaves ou, caso já ultimada a partilha, contra seus herdeiros, e de impossibilidade jurídica do pedido, já que o falecido não teria deixado bens a inventariar e, por isso, não responderiam os réus pela reparação do dano; (II) asseveraram que os bens deixados por seu avô Vidal Sidney Chaves, falecido em 16 de abril de 1999, não poderiam ser alcançados pela presente demanda, já que herdados diretamente pelos réus sem nunca terem integrado o patrimônio de Vidal Volnei Chaves, que faleceu em 2 de fevereiro de 1999; (III) disseram que a culpa não chegou a ser reconhecida no processo criminal, motivo por que seria necessária sua demonstração pelos autores; (IV) afirmaram que o ato lesivo não se deu por culpa de seu pai que apenas defendia-se da investida do pai dos autores, e que, na ocasião dos fatos, seu pai teria sido provocado pelo pai dos autores; (V) impugnaram o montante da indenização reclamada na inicial e, ao final, requereram o acolhimento das preliminares ou o julgamento de improcedência.
Em sua contestação, a ré Caroline Cordeiro Chaves relevou que: (I) da herança de Vidal Sidney Chaves tocaria a cada filho, dentre eles Vidal Volnei Chaves, um total de R$ 62.225,25, de modo que eventual condenação não pode suplantar esse valor; (II) seu pai teria agido em legítima defesa, e não praticado um ato ilícito; (III) reportou-se aos termos da contestação apresentada pelos demais réus e requereu o julgamento de improcedência.
Com impugnação dos autores às contestações (fls. 129-132), manifestou-se o Ministério Público pelo afastamento das preliminares e pela realização de audiência (fls. 134-135).
Em audiência preliminar o juiz rejeitou as preliminares e declarou saneado o feito (fl. 145).
Em audiência de instrução e julgamento (fl. 168), as partes desistiram dos depoimentos pessoais, os autores desistiram da ouvida das testemunhas que arrolaram e foram inquiridas as três testemunhas dos réus Dayanne e Jean; pelos autores e pela ré Caroline foram apresentadas alegações finais remissivas, enquanto os demais réus requereram prazo para a apresentação de suas alegações, que foram apresentadas 5 dias após a audiência (fls. 174-179).
O Ministério Público manifestou-se pelo julgamento de procedência (fls. 181-186).
Na sequência o Magistrado proferiu sentença que julgou parcialmente procedentes os pedidos, para condenar os réus ao pagamento de indenização a título de reparação por danos morais no valor total de R$ 50.000,00, a serem divididos igualmente entre os autores, com juros e correção monetária a contar do protocolo da última contestação.
Consignou o Juiz que, na hipótese de a quantia estabelecida “superar o valor da herança de cada demandado, ficará a indenização limitada ao valor do quinhão destinado aos réus, nos termos do artigo 1.587 do Código Civil de 1916.
Irresignados, Dayanne Franciélle Chaves e Jean Volnei Chaves interpuseram a presente apelação, na qual: (I) arguiram a nulidade da sentença extra petita, que teria determinado a expedição de ofício ao juízo em que tramita o inventário do avô dos apelantes para que reservassem dos seus quinhões valor suficiente para a garantia do pagamento da indenização deferida, providência essa não reclamada na inicial; (II) asseveraram que antes do trânsito em julgado não poderia ser imposta essa reserva de bens, e sustentaram que essa medida já não mais seria cabível, diante do trânsito em julgado da partilha e da expedição do respectivo formal; (III) afirmaram, com esteio no artigo 942 do Código Civil, que os bens de Vidal Sidney Chaves, avô dos apelantes, não poderiam responder pela reparação civil dos danos; (IV) disseram que o quantum indenizatório mereceria redução e pugnaram pelo provimento do apelo.
Com as contrarrazões dos apelados (fls. 214-218), subiram os autos a este Tribunal, onde foram com vista ao Ministério Público, que, em parecer da lavra da Excelentíssima Senhora Procuradora de Justiça Hercília Regina Lemke, manifestou-se pelo conhecimento e desprovimento do recurso (fls. 224-229).
VOTO
Cuida-se de apelação cível interposta por Dayanne Franciélle Chaves e Jean Volnei Chaves à sentença que julgou parcialmente procedentes os pedidos formulados na “ação de indenização por dano moral” deflagrada por Dian Carlos Gusatti e Daianne Patrícia Gusatti.
Independentemente do exame a respeito da culpa, da ocorrência do resultado e do nexo causal, matérias cujo conhecimento não foi devolvido a este Tribunal por meio do presente recurso (tantum devolutum quantum apellatum), a conclusão que se adianta é a de que o apelo merece provimento.
Importante consignar que, ao contrário do aludido pela douta Procuradora de Justiça em seu parecer de fls. 224-229, não se operou preclusão sobre a questão relativa ao recebimento da herança, matéria essa que, como declarou o Juiz por ocasião do despacho saneador, é de mérito e foi examinada apenas na sentença.
Diversamente do decidido em primeiro grau, o patrimônio herdado pelos apelantes em razão do falecimento de seu avô Vidal Sidney Chaves não responde pela reparação dos danos decorrentes do ilícito praticado por Vidal Volnei Chaves.
O pai dos apelantes, Vidal Volnei Chaves, faleceu em 2 de fevereiro de 1999 (fl. 82) e não deixou bens a inventariar; seu pai, avô dos apelantes, Vidal Sidney Chaves, faleceu em 16 de abril de 1999 e seu patrimônio foi partilhado nos autos de inventário n. 039.99.004690-5.
Herdaram os apelantes seu quinhão por conta da incidência da regra do artigo 1.620 do Código Civil de 1916 (com correspondente no artigo 1.851 do Código de 2002), vigente ao tempo da abertura da sucessão, que rege o chamado direito de representação: “Art. 1.620. Dá-se o direito de representação, quando a lei chama certos parentes do falecido a suceder em todos os direitos em que ele sucederia se vivesse”.
Por força dessa disposição legal, os descendentes de uma pessoa já falecida são chamados a substituí-la na sucessão do autor da herança.
Segundo Eduardo de Oliveira Leite, no direito de representação, com a morte do herdeiro presumido antes da abertura da sucessão em seu favor, “são chamados os seus descendentes, em concorrência com os outros descendentes mais próximos do autor da herança, a ocupar o lugar do presumido herdeiro, substituindo-o” (Direito civil aplicado, v. 6: direito das sucessões. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2004, p. 165).
O que é importante examinar são os fundamentos e os efeitos do direito de representação, a iniciar pela arguta observação de Sílvio de Salvo Venosa, que alerta que o termo representação não dá a idéia exata do instituto, pois o herdeiro representante herda diretamente e em nome próprio e não exatamente “representando” o ascendente pré-morto. In verbis: “O dito representante herda por si mesmo, em seu nome, porque a lei lhe faz a vocação hereditária. Não se pode dizer que seja uma sucessão indireta: tanto o que herda por cabeça quanto o que herda por estirpe, o fazem diretamente do falecido” (Direito civil: direito das sucessões. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 121).
Eduardo de Oliveira Leite (ob. cit. p. 165) vai às origens do instituto no direito romano e, calcado na lição de Fernando Brandão Ferreira Pinto, assim assevera:
A expressão direito de representação, nome desgraçadíssimo, no dizer de Zanzucchi, fórmula arcaica, vaga e incerta, como a apelida Nicolò, apareceu em época indeterminada do direito intermédio para designar a sucessão in locum prae-defuncti parentis do direitos justinianeu e, por conseguinte, com um significado muito próprio dentro do direito das sucessões e sem analogias ou afinidades com o instituto da representação – exercício de um direito em nome e por conta de outrem.
E ensina Carlos Roberto Gonçalves a respeito da finalidade e do fundamento jurídico do instituto:
A finalidade do direito de representação é mitigar o rigor da regra de que o grau mais próximo exclui o mais remoto, mantendo o equilíbrio entre pessoas sucessíveis da mesma classe pela substituição, por sua estirpe, da que faltar.
[…]
Malgrado a existência de várias teorias a respeito do fundamento jurídico do direito de representação, como a da comunhão patrimonial familiar, de BETTI; a da unidade e continuidade da família, defendida por ZANZUCCHI; e a da necessidade de tutelar a expectativa do representante, sustentada por NICOLÒ, a discussão acabou limitando-se à seguinte indagação: o jus representationis constitui ficção legal ou direito.
O Código Napoleão (art. 739) considera-o como ficção, pela qual se faz entrar herdeiros mais afastado no lugar, no grau e nos direitos de herdeiro mais próximo, que faleceu antes do de cujus. Como assinala Washington de Barros Monteiro, ‘não é esse, contudo, o ponto de vista do nosso legislador, que reputa a representação um direito” (Direito civil brasileiro, v. 7: direito das sucessões. 2. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 197).
O fundamento do instituto é também apontado por Sílvio de Salvo Venosa (ob. cit. p. 121):
Esse abrandamento que a lei faz ao princípio de exclusão dos herdeiros mais remotos tem, sem dúvida, um alto cunho moral, ou seja, o de equilibrar a distribuição da herança entre os descendentes, presumivelmente ligados pela mesma afetividade ao de cujus. O fundamento é, em síntese, o do direito sucessório em geral. Há uma vontade presumida do falecido na sucessão legítima, e a representação insere-se nesse mesmo diapasão.
[…] Não se trata de ficção legal, como defende Arthur Vasco Itabaiana de Oliveira (1987:102). É um direito fixado pela lei que poderia tê-lo ampliado ou excluído, pois há legislações em que é mais amplo, permitindo até na sucessão testamentária.
É por isso que se vê que quem herda por direito de representação não exerce direito do herdeiro pré-morto, mas direito próprio que a lei lhe confere diretamente. Não há duas sucessões (uma entre o autor da herança e seu descendente em 1º grau já falecido e outra entre este e seus descendentes), mas uma só (entre o autor da herança e seus descendentes em 2º grau na linha reta). Os bens do autor da herança não passam a integrar o patrimônio do pré-morto para, em seguida, serem transferidos aos herdeiros. Isso não ocorre nem mesmo ficticiamente, pois não é essa a finalidade do direito de representação. É o que afirma Orlando Gomes:
[…] sucede-se por direito de representação quando, no momento da abertura da sucessão, falta quem devia suceder, por designação legal, e não sucedeu por impossibilidade física ou jurídica. Ocorre, nesse caso, uma só transmissão, sucedendo em substituição os parentes indicados na lei (Sucessões. 12. ed. atual. por Humberto Theodoro Júnior. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 45-46).
Pontes de Miranda, com a lucidez que lhe é característica, sintetiza: “O representante não exerce, rigorosamente, direitos do representado. Põe-se no lugar e no grau dele, porém, o direito que exerce é seu. Do representado há completa abstração” (apud LEITE, Eduardo de Oliveira. ob. cit. p. 165).
Pois bem. Estabelecidas essas premissas conceituais básicas, é possível concluir que os bens recebidos pelos apelantes por direito de representação na sucessão de seu avô Vidal Sidney Chaves não respondem pela reparação do dano decorrente do ato ilícito praticado por Vidal Volnei Chaves.
Conforme tudo o que acima foi dito a respeito do direito de representação, se o autor do dano, pai dos apelantes, não lhes deixou bens, não serão os herdados por eles na sucessão do avô que responderão pela indenização. O quinhão recebido pelos apelantes nunca integrou o patrimônio do autor do dano, nem mesmo por ficção. Sua condição de pré-morto à sucessão de seu ascendente o impedia de herdar, pois a morte extinguiu sua capacidade civil; já não era mais sujeito de direitos e obrigações por ocasião da sucessão do aqui autor da herança.
Diante disso, a condenação dos apelantes ao pagamento da indenização reclamada na inicial, ainda que nos limites das forças da herança recebida na sucessão do avô Vidal Sidney Chaves, ofende os artigos 1.518 e 1.587 do Código Civil de 1916 (artigos 942 e 1.792 do Código Civil vigente), segundo os quais somente ficam sujeitos à reparação do dano os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem; e os herdeiros não respondem por encargos superiores às forças da herança.
Em arremate, a ensinança de Carlos Roberto Gonçalves (ob. cit. p. 201):
O principal efeito da representação é atribuir o direito sucessório a pessoas que não sucederiam, por existirem herdeiros de grau mais próximo, mas que acabam substituindo um herdeiro pré-morto. Pelo fato de os representantes sucederem diretamente o de cujus, não estão obrigado pelas dívidas do representado, mas somente pelas daquele (original sem grifo).
Conjugadas essas normas com os fundamentos do direito de representação, forçoso concluir-se que a condenação dos apelantes contrariou o ordenamento civil, razão pela qual merece reforma integral a sentença.
Os efeitos do julgamento do presente recurso estendem-se à ré Caroline Cordeiro Chaves, pois o litisconsórcio integrado por ela e pelos apelantes assenta-se exclusivamente na condição de sucessores legítimos da herança deixada por Vidal Volnei Chaves.
Pelo exposto, dá-se provimento integral ao recurso e inverte-se o ônus da sucumbência.
DECISÃO
Nos termos do voto do Relator, esta Segunda Câmara de Direito Civil decide, por unanimidade, conhecer do presente recurso e dar-lhe provimento.
O julgamento, realizado no dia 30 de julho de 2009, foi presidido pelo Excelentíssimo Senhor Desembargador Luiz Carlos Freyesleben, com voto, e dele participou o Excelentíssimo Senhor Desembargador Sergio Izidoro Heil.
Funcionou como representante do Ministério Público o Excelentíssimo Senhor Procurador de Justiça Paulo de Tarso Brandão.
Florianópolis, 7 de agosto de 2009.
Jaime Luiz Vicari
RELATOR