TJ|SC: Apelação Cível – Anulação de promessa de compra e venda por instrumento particular de bens na pendência de inventário – Reclamo dos filhos do herdeiro pós-morto – Ineficácia que não se confunde com invalidade – Caso os co-herdeiros reconheçam o negócio jurídico efetuado por condômino falecido no curso do inventário, o negócio praticado é eficaz – Simulação não comprovada – Promessa de compra e venda realizada antes do falecimento do co-herdeiro – Partilha posterior que contempla o promitente falecido com os bens negociados anteriormente – Adjudicação aos compradores que se impõe – Recurso conhecido e desprovido
Acórdão: Apelação Cível n. 2009.035216-4, de Laguna.
Relator: Des. Ronei Danielli.
Data da decisão: 08.03.2012.
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. ANULAÇÃO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA POR INSTRUMENTO PARTICULAR DE BENS NA PENDÊNCIA DE INVENTÁRIO. RECLAMO DOS FILHOS DO HERDEIRO PÓS-MORTO. INEFICÁCIA QUE NÃO SE CONFUNDE COM INVALIDADE. CASO OS CO-HERDEIROS RECONHEÇAM O NEGÓCIO JURÍDICO EFETUADO POR CONDÔMINO FALECIDO NO CURSO DO INVENTÁRIO, O NEGÓCIO PRATICADO É EFICAZ. SIMULAÇÃO NÃO COMPROVADA. PROMESSA DE COMPRA E VENDA REALIZADA ANTES DO FALECIMENTO DO CO-HERDEIRO. PARTILHA POSTERIOR QUE CONTEMPLA O PROMITENTE FALECIDO COM OS BENS NEGOCIADOS ANTERIORMENTE. ADJUDICAÇÃO AOS COMPRADORES QUE SE IMPÕE. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n. 2009.035216-4, da comarca de Laguna (2ª Vara Cível), em que são apelantes Fernanda Martins Masiero e Arilton Batista Masiero Neto, e apelados Marcelo Augusto Cordeiro, Eliana da Silva Cordeiro e Arilton Batista Masiero:
A Sexta Câmara de Direito Civil decidiu, por votação unânime, conhecer e negar provimento ao recurso. Custas legais.
O julgamento, realizado nesta data, foi presidido pelo Exmo. Sr. Des. Jaime Luiz Vicari, com voto, e dele participou o Exmo. Sr. Des. Stanley da Silva Braga.
Florianópolis, 08 de março de 2011.
Ronei Danielli
Relator
RELATÓRIO
Fernanda Martins Masiero e Arilton Batista Masiero Neto, promoveram, perante a 2ª Vara Cível da comarca de Laguna, ação de anulação de ato jurídico c/c perdas e danos em face de e Marcelo Augusto Cordeiro, Eliana da Silva Cordeiro e Arilton Batista Masiero.
Para tanto, alegaram que seu pai simulou venda de bens específicos e determinados, enquanto pendente inventário de sua avó, cuja sucessão abriu-se em 08 de novembro de 1994, para Eliana e Marcelo Cordeiro, com anuência de seu avô (inventariante) Arilton Batista Masiero.
O avô contestou alegando, preliminarmente, carência de ação e no mérito, a improcedência do pleito, uma vez que seu filho negociou os bens a que faria jus por ocasião da partilha antes de seu falecimento, razão pela qual não há falar em simulação.
Os compradores contestaram ventilando, preliminarmente, inépcia da inicial, impossibilidade jurídica do pedido e inexistência de interesse processual e, no mérito, a improcedência da ação, sendo que o negócio jurídico entabulado por Anderson Masiero, precedeu a sua morte e serviu como pagamento de sua dívida perante o comprador Marcelo que, inteirou o preço dos imóveis transferidos.
A sentença afastou as preliminares aventadas e no mérito julgou improcedente o pedido formulado pelos autores. Condenou-os ao pagamento de custas processuais e honorários advocatícios, suspensa a cobrança, em virtude do benefício da gratuidade judiciária.
Irresignados, os autores apelaram, apresentando os seguintes argumentos: a) houve simulação de compra e venda pelo pai dos apelantes e os compradores, tanto que estes jamais exerceram a posse dos bens, supostamente transferidos; b) é nulo o negócio jurídicos entre eles entabulados, pois se trata de transferência de bens certos e determinados, enquanto pendente a indivisão, originada na abertura da sucessão da avó dos apelantes; c) a nulidade também se extrai na inobservância da forma exigida legalmente para o negócio jurídico praticado, ou seja, a escritura pública.
Com as contrarrazões, os autos ascenderam a esta Corte Estadual de Justiça.
Lavrou parecer pela douta Procuradoria-Geral de Justiça o Exmo. Sr. Dr. Francisco José Fabiano, opinando pelo conhecimento e desprovimento do recurso.
Esse é o relatório.
VOTO
Trata-se de recurso objetivando a reforma de decisão que julgou improcedente o pedido de nulidade de negócio jurídico por ausência de forma legal e simulação.
Alegam os apelantes que seu pai, antes de falecer, firmou com terceiros, ora apelados, compromisso particular de compra e venda de bens hereditários, determinando-os, individualizando-os, ainda na pendência do inventário de sua mãe, avó dos recorrentes.
Tem-se, a teor do artigo 1784 do Código Civil, que a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários, facultando-lhes, portanto, a livre disposição de seu quinhão a contar da abertura da sucessão.
Ocorre que até a efetiva partilha, o herdeiro dispõe de uma cota parte ideal, ainda não individualizada, razão pela qual, fala-se em cessão de direitos hereditários, como prescreve o artigo 1.793, também do Código Civil vigente:
Art. 1.793. O direito à sucessão aberta, bem como o quinhão de que disponha o co-herdeiro, pode ser objeto de cessão por escritura pública.
§ 1º Os direitos, conferidos ao herdeiro em conseqüência de substituição ou de direito de acrescer, presumem-se não abrangidos pela cessão feita anteriormente.
§ 2º É ineficaz a cessão, pelo co-herdeiro, de seu direito hereditário sobre qualquer bem da herança considerado singularmente.
§ 3º Ineficaz é a disposição, sem prévia autorização do juiz da sucessão, por qualquer herdeiro, de bem componente do acervo hereditário, pendente a indivisibilidade.
Contudo, razão não assiste aos apelantes no que concerne à nulidade por falta de forma legal, uma vez que a lei é clara ao indicar a ineficácia da negociação sobre bens certos e determinados na pendência do inventário ou antes mesmo de sua propositura.
Assim, não se confundem os conceitos de ato jurídico ineficaz e ato jurídico inválido.
Conforme ensinamento de Zeno Veloso, a cessão não é inválida – nula ou anulável, mas “ineficaz, não produz efeito, é inoponível aos demais herdeiros. E isto se explica porque a herança é bem indivisível e o coerdeiro é condômino de uma quota-parte, de uma fração ideal”. E continua o autor afirmando que tal negócio poderá revestir-se de eficácia se “na partilha, o aludido bem for efetivamente atribuído ao herdeiro cedente”. (Código Civil Comentado. Da Silva, Regina Beatriz (org.), 7. Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.1816/1817)
Novamente no que pertine à forma, refere a lei que a cessão far-se-á mediante escritura pública. Entretanto, outra distinção merece reparo: fala-se em cessão porquanto se trata a sucessão de uma universalidade, podendo o herdeiro dispor de uma quota ideal enquanto não partilhado o patrimônio. Fala-se, por outro lado, em compra e venda quando se negociam bens singularizados.
No caso em análise, o herdeiro antes do seu falecimento e diante do projeto consensualmente estabelecido entre os familiares coerdeiros (todos maiores e capazes) acerca da partilha dos bens da esposa e mãe, contempla com terceiros (alheios à sucessão) promessa de compra e venda de certos imóveis, recebendo a quitação do preço estipulado.
Tal herdeiro – promitente vendedor (pai dos apelantes) falece em 15.05.2003, antes do término do inventário de sua mãe, mas seu pai, na qualidade de inventariante e, mediante assentimento dos demais herdeiros, habilita os compradores para que fossem diretamente a estes adjudicados os bens por seu filho anteriormente negociados.
A hipótese dos autos, cumpre ressaltar, não versa sobre coerdeiros reclamando a ausência de forma legal – escritura pública da cessão, ou invalidade da compra e venda, tampouco a inobservância do direito de preferência. Caso a mesma ação tivesse por algum condômino (coerdeiro) sido proposta poder-se-ia vislumbrar sucesso na argumentação, visto que a ineficácia da alienação de bem considerado singularmente visa a proteção de patrimônio comum, na constância do inventário, inoponível a coerdeiro. O mesmo não ocorrre em relação aos apelante.
Note-se, em tempo, que os insurgentes não são considerados coerdeiros da sucessão em questão, porque ainda vivo seu pai na ocasião do falecimento de sua avó, mas reclamam na condição de herdeiros do herdeiro pós morto. Assim, não lhes cabe sequer alegar invalidade por inobservância do direito de preferência, tampouco interpretar ineficácia como invalidade. Ainda mais quando os demais condôminos – herdeiros e meeiro reconhecem o negócio jurídico como legítimo e destinam efetivamente os imóveis antes alienados ao herdeiros falecido no curso do inventário, tornando a anterior alienação plenamente eficaz.
No que tange à alegada simulação, melhor sorte não merece o apelo.
O contrato de compromisso de compra e venda firmado pelo pai dos apelantes com o casal apelado – Marcelo Augusto Cordeiro e Eliana Cordeiro é datado de 13.01.2003. Sua morte, em decorrência de um acidente automobilístico, ocorreu apenas quatro meses após a mencionada transferência, em 15.05.2003. Apesar da proximidade das datas, nada há nos autos a indicar qualquer espécie de fraude ou simulação, tampouco questionada a autenticidade do documento, cujas firmas foram devidamente reconhecidas.
Ademais, não se pode cogitar do propósito do pai de fraudar os interesses patrimoniais dos filhos, uma vez sua morte tenha decorrido de imprevisto acidente.
A pretendida simulação, que no caso seria absoluta, nos dizeres de Arnaldo Rizzardo, verifica-se “quando a declaração de vontade exprime aparentemente um negócio jurídico, mas as partes não efetuam negócio algum. Há completa ausência de qualquer realidade”. (Parte Geral do Código Civil. 7.Ed.Rio de Janeiro: forense, 2011, p. 495)
Os elementos constantes nos autos dão suporte à realidade do negócio efetuado, quer porque os imóveis foram entregues em parte para saldar uma dívida assumida perante o casal apelado, tendo sido pago valor compatível pelo excedente, quer porque os mesmos bens foram oferecidos primeiramente aos locatários dos imóveis, conforme atesta a prova testemunhal (fl. 53).
Nesse mesmo sentido, destaca-se a seguinte passagem da sentença recorrida:
Extrai-se dos depoimentos que Anderson tinha mesmo a intenção de vender as salas, bem como que após o seu falecimento quem passou a administrar os imóveis foi o seu irmão Ailson e não o réu Arilton, a quem as testemunhas em nenhum momento se referem.
Para contextualizar a demanda é preciso que se diga que Anderson era notoriamente envolvido em confusões, fato público e notório nesta Comarca, tanto que em seu nome o SAJ registra a existência de 49 processos. Muitos são termos circunstanciados e alguns são inquéritos policiais, mas chama a atenção o grande número de execuções de alimentos ajuizadas por seus filhos entre os anos de 1999 a 2003, sendo visível diante dessa realidade que Anderson só pagava os alimentos quando compelido judicialmente, muito provavelmente quando ameaçado de prisão.
Diante disso não surpreende a alegação de que vendeu todo o seu patrimônio para custear empréstimos e saldar outras dívidas, fato que passou à margem da vontade de seu pai ou de seus irmãos. (fl.243)
Por último, atente-se para o fato de que mesmo sendo de difícil comprovação a ocorrência da simulação, compete ao autor o ônus de trazer ao processo os indícios suficientes para antever a maquinação da partes envolvidas no intuito de prejudicar seus interesses. Inexistindo prova, ainda que indiciária, não há falar-se em nulidade por simulação.
Colacionam-se, a propósito, alguns precedentes desta Corte:
1) Apelação Cível n. 2011.093261-5, de Garopaba, relator Desembargador Luiz Carlos Freyesleben, Segunda Câmara de Direito Civil, DJe de 24.01.2012:
PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. AÇÃO DE ANULAÇÃO DE ATO JURÍDICO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. APELO DO AUTOR. ALEGAÇÃO DE REVELIA DE UM DOS RÉUS INOCORRENTE. EXEGESE DO ART. 241, III, DO CPC. MÉRITO. DEMANDANTE VISANDO À DECRETAÇÃO DE NULIDADE DE COMPRA E VENDA PACTUADA ENTRE OS RÉUS. FALTA DE INDÍCIOS FORTES A RESPEITO DA OCORRÊNCIA DA SIMULAÇÃO. INEXISTÊNCIA DE PROVA DA MÁ-FÉ DOS CONTRATANTES. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. EM CONTRARRAZÕES, PEDIDO DE CONDENAÇÃO DO AUTOR EM LITIGÂNCIA MÁ-FÉ. AUSÊNCIA DE PROVA DOS REQUISITOS DO ART. 17 DO CPC.
[…]
Simulação de negócio jurídico consiste na prática de ato ou negócio a fim de dissimular a real intenção dos contratantes. à conta disso, ainda que a prova direta da existência de vício seja de difícil demonstração, é do autor o ônus de provar a existência de indícios fortes sobre o fato, sob pena de improcedência do pedido anulatório.[…] (sem grifo no original)
2) Apelação Cível n. 2007.029110-7, de Mafra, relator Desembargador Ronaldo Moritz Martins da Silva, Quarta Câmara de Direito Civil, DJe de 08.12.2011:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ANULATÓRIA DE ATO JURÍDICO. ALEGADA TRANSFERÊNCIA DE 2 (DOIS) VEÍCULOS EFETUADA PELO CÔNJUGE VARÃO, EM FAVOR DE SEU GENITOR. BENS MÓVEIS, SEGUNDO SUSTENTA A AUTORA, INTEGRANTES DO PATRIMÔNIO COMUM. AUSÊNCIA DE PROVA DA SUPOSTA TRANSFERÊNCIA. CONJUNTO PROBATÓRIO ACOSTADO AO FEITO QUE NÃO REVELA INDÍCIOS DE SIMULAÇÃO OU FRAUDE. COMPRA DOS REFERIDOS VEÍCULOS, PELO GENITOR REQUERIDO, REALIZADA EM PERÍODO ANTERIOR E POSTERIOR AO PROCESSO QUE DEU INÍCIO À SEPARAÇÃO DO CASAL. PROVA DOCUMENTAL E TESTEMUNHAL QUE APONTA A PROPRIEDADE DO PAI, ORA DEMANDADO, SOBRE OS ALUDIDOS BENS. UTILIZAÇÃO DOS VEÍCULOS PELO EX-MARIDO QUE, POR SI SÓ, NÃO AUTORIZA O RECONHECIMENTO DE SUA PROPRIEDADE. NULIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO AFASTADA. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. (sem grifo no original)
3) Apelação Cível n. 2009.007460-0, de Joinville, relator Desembargador Eládio Torret Rocha, Quarta Câmara de Direito Civil, DJe de 04/11/2011:
DIREITO OBRIGACIONAL. DEMANDA COMINATÓRIA. OBRIGAÇÃO DE FAZER. OUTORGA DE ESCRITURA PÚBLICA DE TRANSFERÊNCIA DE PROPRIEDADE DE IMÓVEL URBANO. COMPRA E VENDA REALIZADA POR MANDATÁRIO, NOS LIMITES DOS PODERES OUTORGADOS. ADQUIRENTE QUE QUITOU REGULAR E INTEGRALMENTE O PREÇO PACTUADO. AUSÊNCIA DE PROVA ACERCA DA ALEGADA SIMULAÇÃO. PRESUMIDA BOA-FÉ DA AUTORA NÃO ELIDIDA PELA PROVA PRODUZIDA. EVENTUAL DIVERGÊNCIA ENTRE MANDANTE E MANDATÁRIO QUE NÃO CONTAMINAM O NEGÓCIO JURÍDICO ENFOCADO. INTELECÇÃO DOS ARTS. 679 DO CC/2002 E 1.313 DO CC/1916, E ARTS. 333, INCS. I E II DO CPC. PEDIDO ACOLHIDO. RECURSO IMPROVIDO.
Inexistindo prova do conluio entre o comprador e o mandatário, há de prevalecer a compra e venda perfectibilizada, não só porque pago integralmente o preço, como também porque eventual divergência entre o mandante e o mandatário não tem o condão de contaminar o negócio realizado com terceiro de boa fé. (sem grifo no original)
Em suma, sendo o pai dos apelantes herdeiro e, por isso, titular de seu quinhão hereditário desde a abertura da sucessão de sua mãe e, tendo em acordo informal com os demais coerdeiros estabelecido sobre quais bens recairia seu direito sucessório, nada o impedia de firmar com terceiros compromisso de compra e venda que perfectibilizar-se-ia ao término do processo de inventário quando, então, seriam tais imóveis a ele atribuídos na partilha e assim, transferidos devidamente aos compradores.
O contrato em tela gerou direito obrigacional que fora respeitado e honrado pelo meeiro e coerdeiros de Anderson. Não houve, portanto simulação, apenas respeito ao contratado pelo herdeiro que veio a falecer antes da partilha. Não fosse isso, os bens que vieram a compor seu quinhão seriam regularmente por Anderson transferidos aos compradores, sem que seus filhos (apelantes) nada pudessem fazer, pois não há nenhuma regra impondo indisponibilidade patrimonial ou restrição aos negócios onerosos decorrente da existência de herdeiro necessário.
Por todo o exposto, o recurso deve ser conhecido e desprovido.
Esse é o voto.
Gabinete Des. Ronei Danielli