1ª VRP|SP: Registro de imóveis – Ordem jurisdicional de averbações de penhora de direito de compromissário-comprador – Direito de compromissário-comprador, entretanto, que não estava registrado – Qualificação negativa do título judicial – Reiteração da ordem jurisdicional, com cominação de prisão por crime de desobediência – Cumprimento da ordem jurisdicional, com a prática das averbações determinadas – Representação do ofício de registro de imóveis – A primeira qualificação negativa foi correta (as averbações não se podiam fazer, ainda que se invocasse a LRP/1973, art. 167, II, 12, porque não concerniam a nenhum ato ou título inscrito) e necessária (é dever do ofício de registro qualificar todo e qualquer título que se lhe apresente para fins de inscrição lato sensu) – O cumprimento da ordem jurisdicional, depois de reiterada, também foi correto (não pode o ofício de registro negar cumprimento a ordem da Justiça, e não pode a corregedoria permanente, depois, mandar desfazer o que com base em tal ordem se inscreveu), ainda que a ordem tenha sido (como foi) ilegal – Descabimento da cominação de prisão, porque não existe crime de desobediência sequer em tese – Inexistência de providências correcionais – Extinção e arquivamento destes autos de providências.

0051973-34.2013.8.26.0100
CP 270
Pedido de Providências
5º Oficial de Registro de Imóveis da Capital de São Paulo
Sentença
CONCLUSÃO.
Registro de imóveis – ordem jurisdicional de averbações de penhora de direito de compromissário-comprador – direito de compromissáriocomprador, entretanto, que não estava registrado – qualificação negativa do título judicial – reiteração da ordem jurisdicional, com cominação de prisão por crime de desobediência – cumprimento da ordem jurisdicional, com a prática das averbações determinadas – representação do ofício de registro de imóveis – a primeira qualificação negativa foi correta (as averbações não se podiam fazer, ainda que se invocasse a LRP/1973, art. 167, II, 12, porque não concerniam a nenhum ato ou título inscrito) e necessária (é dever do ofício de registro qualificar todo e qualquer título que se lhe apresente para fins de inscrição lato sensu) – o cumprimento da ordem jurisdicional, depois de reiterada, também foi correto (não pode o ofício de registro negar cumprimento a ordem da Justiça, e não pode a corregedoria permanente, depois, mandar desfazer o que com base em tal ordem se inscreveu), ainda que a ordem tenha sido (como foi) ilegal – descabimento da cominação de prisão, porque não existe crime de desobediência sequer em tese – inexistência de providências correcionais – extinção e arquivamento destes autos de providências.
Vistos etc.
1. O 5º Ofício de Registro de Imóveis de São Paulo (5º RISP) representou (fls. 02-10) ter recebido e cumprido ordem jurisdicional acerca dos imóveis das matrículas 72.194 (fls. 16-18) e 72.195 (fls. 19-20), ordem essa que lhe foi dada pela 26ª Vara Cível Central (26ª VCC) da comarca de São Paulo nos autos de execução 0200566-15.2007.8.26.0100 (fls. 11-15). 1.1. Segundo a representação, um ofício passado pela dita 26ª VCC, nos autos referidos, fora prenotado (n. 266.047) e devolvido com exigências em abril de 2013. Em 4 de julho de 2013 a mesma 26ª VCC determinou que um seu oficial de Justiça rumasse ao 5º RISP e intimasse o registrador a cumprir a ordem jurisdicional, agora sob pena de crime de desobediência e de providências administrativas e cíveis. Como a ordem foi inequivocamente reiterada, o 5º RISP deu-lhe cumprimento cabal, e procedeu à Av. 09 na mat. 72.194 e à Av. 04 na mat. 72.195, para fazer constar penhora de direito de compromissário-comprador que cabe a Audir Aquino Lubas e Gildete Monteiro Aquino Lubas.
1.2. Ocorre que – salienta o 5º RISP – a 26ª VCC aludiu a essas averbações qualificando-as de singela averbação de notícia sobre a demanda e fundamentando-as sobre a Lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973 – LRP/1973, art. 167, II, 12, segundo o qual no registro de imóveis se faz, também, a averbação das decisões, recursos e seus efeitos, que tenham por objeto atos ou títulos registrados ou averbados. Contudo, in casu não existe nenhum registro ou averbação relacionado com o direito de compromissário-comprador que foi penhorado no curso da execução que corre perante a 26ª VCC: não há promessas registradas, os executados não são titulares de direitos inscritos e as partes Audir e Gildete são totalmente estranhas ao registro, de maneira que as averbações em verdade não se podiam fazer pela via pretendida pela 26ª VCC.
1.3. A ordem jurisdicional sugere a prática de uma inscrição (lato sensu) preventiva ou acautelatória; essa espécie de inscrição (lato sensu), porém, está posta em numerus clausus, em rol taxativo, como já dizia a doutrina no direito anterior, cujas regras (Decreto 4.827, de 7 de fevereiro de 1924, art. 5º, a, VIII; Decreto 18.542, de 24 de dezembro de 1928, art. 267; Decreto 4.857, de 9 de novembro de 1939, art. 281) compreendiam, numa só dicção, a inscrição (lato sensu) das ações reais ou pessoais reipersecutórias e das decisões, recursos e seus efeitos. A LRP/1973 inovou nesse ponto, e previu, de um lado, o registro das ações reais e pessoais reipersecutórias (art. 167, I, 21) e, de outro, a averbação das decisões, recursos e seus efeitos, que tenham por objeto atos ou títulos registrados ou averbados (art. 167, II, 12), distinção que, entretanto, não significou nenhuma mudança substancial, porque essas averbações (art. 167, II, 12, repita-se) continuaram a limitar-se a dar publicidade a pronunciamento ou providência judiciária sobre atos objeto de registro ou atos do próprio registro.
1.4. Ademais, ainda que a LRP/1973, art. 246, possa excepcionar a regra da taxatividade dos atos inscritíveis (lato sensu), ainda assim implica, essa regra, averbações que sempre se refiram a vicissitudes que de qualquer modo possam alterar o registro. Por isso, a jurisprudência paulista sempre impediu que, por má aplicação do dito art. 246, (a) seja averbado contrato de comodato (Conselho Superior da Magistratura – CSM, Apelação Cível – Ap. Cív. 10.608-0/3 – Araras, j. 2.7.1990, DJ 17.8.1990), ou (b) tenha ingresso no registro algum ato o qual, visando embora a acautelar direitos e a prevenir terceiros, não tenha sido expressamente previsto pelo legislador como caso de averbação (CSM, Ap. Cív. 11.420-0/2 – São Paulo, j. 2.7.1990, DJ 1.8.1990; CSM, Ap. Cív. 8.722-0/3, j. 7.11.1988, DJ 6.12.1988).
1.5. À 26ª VCC, para que se fizesse a averbação que pretendia, bastava ter inequivocamente reiterado a ordem, a qual seria acatada sem mais, como determina a jurisprudência (CSM, Ap. Cív. 321-6/7 – São Pedro, j. 14.4.2005, DJ 25.5.2005) e reconhece a doutrina (Ricardo Dip. Dúvida sobre o futuro da dúvida. RDI 64/254) A cominação de prisão, além de desnecessária, não estava correta, porque, nos termos das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça – NSCGJ, tomo II, capítulo XX, item 106, o ofício do registro de imóveis está obrigado a qualificar todo e qualquer título que lhe seja apresentado para inscrição (lato sensu). Além disso, o Supremo Tribunal Federal já declarou que em tal caso não há cogitar de crime de desobediência (1ª Turma, HC 85911-MG, j. 25.10.2005, DJ 2.12.2005), o que também afirma a doutrina (Antônio Scarance Fernandes. O cumprimento de ordem jurisdicional pelo registrador – aspectos penais e processuais. Doutrinas Essenciais de Direito Registral, vol. 1, p. 1.043).
1.6. A representação foi instruída com documentos (fls. 11-20).
2. É o relatório. Passo a fundamentar e a decidir.
3. De início, observe-se que é desnecessária a intervenção do Ministério Público, porque a representação versa questão disciplinar, ou seja, a cominação de responsabilidade administrativa feita pela 26ª VCC ao 5º RISP.
4. Quanto ao fundo da questão, cabe observar que: (a) o 5º RISP agiu bem quando devolveu, com exigências, o ofício datado de 1º de abril de 2013, assinado pela 26ª VCC e objeto da prenotação 266.407 (fls. 13), porque a inscrição (lato sensu) ali determinada era incabível (cf. item 5, infra); (b) o mandado datado de 16 de maio de 2013, também assinado pela 26ª VCC e objeto da prenotação 268.548 (fls. 11), contém ordem ilegal, já por determinar inscrição (lato sensu) incabível, já por cominar prisão por inexistente (mesmo em tese) crime de desobediência (cf. item 6, infra); e (c) a Av. 09 da mat. 72.194 e a Av. 04 da mat. 72.195, conquanto sejam errôneas à luz das regras do registro, decorreram de ordem jurisdicional que, no entendimento da jurisprudência hoje predominante, não podia ter sido arrostada pelo ofício de registro nem pela corregedoria permanente, conquanto essa ordem fosse ilegal; assim, o 5º RISP atuou corretamente ao cumpri-la, e não é caso de mandar cancelar as averbações administrativamente (cf. item 7, infra).
5. O 5º RISP agiu bem (a) ao qualificar e (b) ao qualificar negativamente o ofício datado de 1 de abril 2013 (fls. 13).
5.1. Ao qualificar, porque não há título (e. g., escritura pública, instrumento particular, instrumento judicial) que não esteja sotoposto ao exame do ofício de registro, ao qual, com independência (in suo ordine, como frisa o próprio 5º RISP a fls. 06), compete decidir se dada inscrição (lato sensu) pode ou não fazer-se, segundo a lei: é o que dizem – e cita-se brevitatis causa – as NSCGJ, II, XX, 106. Para usar uma expressão antiga, mas sugestiva (Karl Gareis. Das Deutsche Handelsrecht. 7 ed. Berlin: Guttentag, 1903, p. 19), o ofício de registro não é um fonógrafo que deva reproduzir passivamente o quer que se pretenda gravar-lhe.
5.2. Ao qualificar negativamente, porque a LRP/1973, art. 167, II, 12 – de dicção bastante clara, aliás -, só permite a averbação de decisão ou recurso e seu efeito, que tenha por objeto ato ou título registrado ou averbado. Ora, no caso não sucedia nada disso: a penhora decretada pela 26ª VCC (fls. 14-15) alcançava um direito de compromissário-comprador que não estava inscrito (lato sensu), ou seja, um direito meramente obrigacional que não se pode considerar, ainda à custa de muito elastério, ato ou título registrado ou averbado (e sirva de ilustração, nesse sentido, o que decide a jurisprudência acerca da inscrição do comodato, como está mencionado na representação). Assim, à falta de hipótese legal para a inscrição lato sensu (= para a averbação), o 5º RISP não tinha outro remédio a dar, a não ser devolver o ofício sem deferir o ato registrário pretendido, no que não existem nenhuns obstáculos artificiais (fls. 12).
5.3. Para justificar a aplicação da LRP/1973, art. 167, II, 12, a um caso ao qual ela evidentemente não incidia, não servia acrescentar à decisão jurisdicional, como se fosse panaceia, a afirmação de que se pretendia singela averbação de notícia sobre a demanda. Para usar uma expressão que Salvatore Pugliatti emprega quando vai tratar, justamente, da publicidade-notícia (La Trascrizione – La pubblicità in generale. Milano: Giuffrè, 1957, p. 223), existe aí un errore di impostazione, um erro de impostação. A determinação dos atos inscritíveis (seja esse rol em numerus apertus ou em numerus clausus) depende sempre do que preveja a lei, pois mesmo a interpretação do campo que se possa dizer apertus depende dos marcos que a própria lei ponha. Quer dizer: mesmo quando se trata de publicidade-notícia, a impostação correta é partir da lei para determinar certa área em que caibam tais ou quais atos inscritíveis, e não principiar da ideia de que exista uma publicidadenotícia como categoria abstrata que justifique a inscrição do que quer que seja, e mesmo quando não se provoque alteração no registro – ideia essa última de que, abusivamente e em má técnica, lançaram mão as decisões copiadas a fls. 12 e14-15, que levaram aos títulos formais de fls. 11 e 13.
5.4. Para ilustrar cabalmente o que se disse, seria necessário descer ao exame do modo como se chegou a concluir, no direito registral, pela existência de uma publicidade-notícia, ou seja, de uma publicidade que se restringe à mera cognoscibilidade legal e não produz efeitos outros (Pugliatti, op. cit., p. 224; Carlos Ferreira de Almeida, Publicidade e Teoria dos Registos. Coimbra: Almedina, 1966, p. 333-334). Para isso, evidentemente, não há espaço em sentença, de modo que vale a pena mencionar, somente, o emblemático método de análise de Konrad Cosack (Lehrbuch des Handelsrechts. 9 ed. Stuttgart: Enke, 1922, p. 17-20), que foi um dos primeiros autores a ressaltar (note-se, no âmbito do registro do comércio) a existência da publicidade-notícia (Renato Corrado. La Pubblicità nel Diritto Privato. Torino: Giapichelli, 1947, p. 291, nota). Cosack não identificou a categoria da publicidade-notícia porque partisse de categorias que houvesse estabelecido a priori, pelo contrário: constatou ele, no direito positivo (frise-se), que havia várias maneiras pelas quais um fato inscritível e inscrito pudesse ser juridicamente relevante (Lehrbuch cit., p. 17): no direito comercial alemão então vigente, uma inscrição ora reforçava o fato inscrito, que passava a ser oponível a terceiro, e não apenas a quem comprovadamente o conhecesse (p. 19); ora tinha força constitutiva, porque sem ela o fato inscritível e por inscrever não podia ser oposto a ninguém, sequer a quem já o conhecesse (p. 19-20); ora tornava o fato inscrito oponível a qualquer um, ainda que se provasse que fosse falso e que o legitimado tivesse conhecimento dessa falsidade (p. 20); ora, finalmente, era meramente documentativa (bloss rechtsbeurkundend), quando o fato inscritível pudesse ser oposto a qualquer um, estivesse ou não inscrito (p. 19): essa última hipótese dava-se, no direito alemão, por exemplo, quanto à insolvência do comerciante pleno, que podia ser oposta a quem quer que fosse, tivesse sido inscrita ou não no registro do comércio, embora devesse sê-lo (Cód. Comercial alemão, § 32). Como se vê, longe se está, aí, de identificar a publicidade-notícia (a publicidade meramente documentativa, no dizer de Cosack) com a possibilidade de inscrever o que se quiser, a pretexto da conveniência do público: em verdade, está-se apenas a constatar que há inscrições (lato sensu) que a lei tolera ou até comanda, sem que a inscrição ou a respectiva omissão implique algum ganho ou perda de eficácia jurídica, e não que seja próprio de um sistema de registro admitir a inscrição do que quer que seja, a pretexto de prestar somente uma informação.
6. Estando correta a primeira qualificação negativa (= aquela feita sobre o ofício datado de 1 de abril de 2013, copiado a fls. 13), segue-se que não foi correta a ordem (cópia a fls. 11) que não só mandou proceder manu militari à inscrição que já se sabia incabível, como ainda – o que é pior – aventou crime de desobediência (Cód. Penal, art. 330), ilícito de que não se pode cogitar quando (passe o truísmo) a ordem seja ilegal e quando a recusa venha exercitada no cumprimento estrito de um dever (Cód. Penal, art. 23, III), como é o caso do poder de qualificação que se concedeu ao ofício de registro, e de cujo exercício o esse mesmo ofício de registro não pode abdicar.
7. Ilegal embora, a ordem promanada da 26ª VCC teve natureza jurisdicional e, uma vez reiterada inequivocamente (como foi), o 5º RISP não tinha senão de cumpri-la – o que fez, tanto que se fizeram a Av. 09 na mat. 72.194 e a Av. 04 na mat. 72.195 (fls. 18 e 20), com a cautela de deixar claro que só se deu cumprimento a uma determinação da Justiça. Nisso também agiu corretamente o ofício de registro e, segundo a jurisprudência hoje dominante (brevitatis causa: Superior Tribunal de Justiça, Conflito de competência 106.446-SP, Rel. Sidnei Beneti, j. 26.03.2010), não cabe à corregedoria permanente mandar, a posteriori, que se desfaçam as inscrições (lato sensu) irregularmente feitas, nem bloquear a matrícula: portanto, caveat emptor pelo que da própria matrícula consta!
8. Do exposto, não havendo providência correcional que tomar, declaro extintos estes autos de providências, iniciados por representação do 5º Ofício de Registro de Imóveis de São Paulo (prenotação 268.548; Av. 09 na mat. 72.194; Av. 04 na mat. 72.195). Não há despesas processuais. Oficie-se à 26ª Vara Cível Central, com cópia desta sentença, para instruir os autos 0200566- 15.2007.8.26.0100. Oportunamente, arquivem-se os autos.
P. R. I.
São Paulo, 21 de novembro de 2013.
JOSUÉ MODESTO PASSOS Juiz de Direito
(D.J.E. de 27.01.2014 – SP)